Responsável por cerca de dois terços da geração no país, a hidreletricidade vive há um longo período sob a suspeita da capacidade de recuperar os níveis de armazenamento e manter-se como carro-chefe da energia limpa. Mesmo sem risco de racionamento, as hidrelétricas estão sob intensa observação dos especialistas do setor diante da redução aparentemente estrutural dos volumes de chuvas ano após ano.

Com menos chuvas, o “combustível” das hidrelétricas demanda maior geração térmica, cujo custo mais elevado é repassado aos consumidores. Quem paga a conta também assumiu o risco hidrológico, conhecido pela sigla GSF, hoje com montante em aberto na casa dos R$ 8 bilhões.

Mas um custo invisível tende a aparecer para os consumidores, elevando ainda mais as tarifas. Um estudo, idealizado pelo Instituto Escolhas e elaborado pela PSR Consultoria aponta o risco de se repassar anualmente pelo menos R$ 4,5 bilhões a todos os consumidores, por causa por causa da escassez e conflito pela água e a frágil gestão dos recursos hídricos no Brasil.

Apresentado na última quinta-feira (28/11), no auditório do jornal Folha de S. Paulo, a análise “Setor Elétrico: como precificar a água em um cenário de escassez” destaca três casos em que se verificou insuficiência hídrica, nas bacias dos rios São Francisco e Jaguaribe e na hidrelétrica de Belo Monte, e sugere medidas que auxiliem na elaboração de políticas públicas voltadas para o uso da água.

O estudo levanta a questão do uso da água e o impacto sobre os consumidores de energia no momento em que o governo estuda mecanismos para reduzir as tarifas, no âmbito da Modernização do Setor Elétrico, ao mesmo tempo que os reservatórios de hidrelétricas vêm enfrentando dificuldades para recompor armazenamentos com chuvas menores.

Em paralelo, agentes do setor buscam reduzir os efeitos do risco hidrológico, enquanto setores do governo já sinalizam retomada da implantação de novas hidrelétricas.

No lançamento da MegaWhat, o secretário de Planejamento e Desenvolvimento do Ministério de Minas e Energia (MME), Reive Barros, disse que o governo estuda alternativas para implantação de 15 GW hidrelétricos com reservatórios, que precisam ter estudos de inventário e viabilidade, mas que não encontram empreendedores interessados em realizar tais avaliações.

Insumo básico

O ponto de partida do estudo é a premissa de que a água é um insumo básico para a geração de energia elétrica. Além da eletricidade, a água das bacias hidrográficas tem múltiplos usos: além do consumo humano, usa-se para irrigação/agricultura e para refrigeração de termelétricas, entre outros usos.

“A definição de critérios econômicos e de prioridades para a tomada de decisão tem de se antecipar à crise e derrubar o mito da abundância de água no Brasil”, afirma o estudo.

Entre as recomendações do estudo estão a melhoria do monitoramento da água, com planejamento e gestão efetiva de todos os dados relativos a retiradas, usos e retornos do insumo em todos os mananciais.

Isso inclui uma reconstituição de séries de vazões, melhoria no monitoramento de chuvas com instalação de mais postos de medição, criação de bases de dados sobre sistemas de resfriamento termelétrico, produção e levantamento de bases de dados precisos sobre áreas irrigadas, restrição de expansão térmica em áreas com situações hidrológicas consideradas críticas, e revisão de valores cobrados pelo uso da água, estabelecidos de acordo com usos e prioridades.

Rafael Kelman, diretor da PSR, o uso da água para irrigação cresceu 600% nos últimos 30 anos, por exemplo. “Começamos a perceber a importância do estresse hídrico” afirmou. “O conflito pelo uso da água vai se intensificar, porque ela ficará mais escassa, seja devido às mudanças climáticas, seja pelo aumento do consumo”, completou Sergio Leitão, diretor-executivo do Instituto Escolhas.

Um dos exemplos de conflitos pelo uso da água está na redução da vazão da bacia do rio São Francisco, sistematicamente afetada por falta de chuvas nos últimos anos. Promovida pela Agência Nacional de Águas (ANA), a vazão menor impacta na geração porque obriga as hidrelétricas a preservarem os geralmente baixos níveis de armazenamento, bem como eleva a prioridade da água para outros usos

Estudo de caso do rio São Francisco

A PSR analisou as bacias dos rios São Francisco e Xingu, de onde projetaram um prejuízo de R$ 4,5 bilhões ao ano para os consumidores – podendo ser ainda maior, dependendo de outras variáveis.

No caso do Velho Chico, o problema está diretamente relacionado à escassez de água, que resultaria numa perda de garantia física da ordem de 1.900 MW médios, o que corresponderia a um prejuízo anual aos geradores de até R$ 2,5 bilhões. Isso porque a perda de garantia física foi valorada com base num Custo Marginal de Expansão (CME) de R$ 154/MWh.

Além disso, existem 13 termelétricas instaladas na bacia, cujo resfriamento, naturalmente, vem dessas águas. Num cenário de escassez, as usinas teriam custos adicionais de uso da água em quadro emergencial – usinas a gás pagariam em torno de R$ 3,50/MWh enquanto usinas a biomassa teriam despesa de R$ 9,20/MWh.

Além disso, se essas termelétricas não puderem operar por falta de água, seriam obrigadas a comprar energia no mercado para poder cumprir os contratos assumidos. “O montante anual poderia atingir R$ 100 milhões, considerando apenas os meses de estiagem [a simulação trabalha com um cenário de quatro meses],, com a hipótese de o preço da energia no mercado ter atingido um teto máximo de R$ 500/MWh”, aponta o estudo.

Estudo de caso do rio Xingu – Belo Monte

Os outros R$ 2 bilhões foram obtidos com a simulação da disputa pela água na bacia do rio Xingu, ao se adotar apenas uma alternativa de operação na hidrelétrica Belo Monte, de acordo com proposta feita pelo Ministério Público Federal.

A usina estabeleceu duas alternativas operativas, denominadas Hidrogramas de Consenso A e B, que são utilizadas a fim de manter as vazões de água do Xingu. Em linhas gerais, os hidrogramas são adotados de forma alternada entre anos úmidos e secos. No entanto, o Ministério Público solicitou apenas a adoção do hidrograma B, alegando que a opção A interfere no habitat de espécies de peixes, comunidades indígenas e ribeirinhos.

Essas opções de operação foram criadas porque a usina foi construída na área conhecida como Volta Grande do Xingu, onde foi adotado um desvio do rio para que se aproveitasse um desnível de aproximadamente 90 metros. O problema é que esse arranjo poderia criar disputa pelo uso da água com a população ribeirinha e com comunidades indígenas no entorno da Volta Grande – daí a opção pelos hidrogramas de consenso, estabelecidos no processo de licenciamento.

O estudo simulou a adoção apenas do hidrograma B e concluiu que além do prejuízo financeiro, a usina teria como reflexo a redução de 1.500 MW médios de energia firme, que teria que ser suprida por outras fontes, considerando CME de R$ 154/MWh.

Estudo de caso do rio Jaguaribe

Já no caso do rio Jaguaribe, o estudo recordou a situação do açude Castanhão, que em 2017 atingiu a marca de 5% do seu volume total, pior cenário desde que entrou em operação, em 2012. O Castanhão atende a Região Metropolitana de Fortaleza e o Polo Industrial de Pecém – onde estão instaladas as térmicas a carvão Pecém I e Pecém II, que demandam água para resfriamento cujo volume é capaz de atender a uma cidade de 600 mil habitantes.

Em 2016, o governo do Ceará publicou uma lei que prevê cobrança de encargo diferenciada para o uso dos recursos hídricos às termelétricas, considerando o volume de água bruta consumida por esses empreendimentos. O encargo equivale a sete vezes o valor mensal praticado, como forma de inibir o uso da água pelas usinas.

As usinas recorreram à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que negou pedido de revisão do Custo Variável Unitário (CVU). Assim, as usinas pleitearam na Justiça o direito de repassar os custos para as tarifas.

As usinas ganharam o direito de receber, relativo ao período de setembro de 2016 a agosto de 2019, o valor de R$ 148 milhões.

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