A abertura gradual do mercado livre de energia para mais consumidores tem sido acompanhada de obstáculos nos processos de migração junto às distribuidoras, a maior parte deles relacionados a exigências desnecessárias, descumprimento de prazos e problemas de comunicação. Há inclusive problemas mais graves, como de abuso de poder por parte das empresas, que estariam usando dados confidenciais dos consumidores atualmente regulados.
A conclusão é da Associação Brasileira de Comercializadores de Energia (Abraceel), que abriu um canal exclusivo para suas associadas relatarem dificuldades enfrentadas no processo de migração de consumidores para o mercado livre. Em 30 dias, foram recolhidos 148 casos de 20 associadas, que representam diversos grupos do setor. As denúncias vão ajudar a entidade na elaboração de um material para esclarecer as regras, o que pode ou não ser requisitado no processo de migração.
“A gente sabe que não é um processo uniforme, nem todas as distribuidoras tocam esse processo da mesma forma. Há muita desinformação, há muitas questões que podem melhorar para que isso flua de forma mais tranquila para todos, para os distribuidores, para os comercializadores e, sobretudo, para os consumidores”, disse Rodrigo Ferreira, presidente da Abraceel, em entrevista à MegaWhat.
A partir dos casos recolhidos com os associados, a Abraceel está trabalhando para elaborar orientações das melhores práticas para esse momento. Também há conversas com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que só recebeu oficialmente uma reclamação até então.
Segundo Ferreira, os 148 casos estão longe de representar todos os problemas, já que muitos consumidores não quiseram prosseguir com denúncias. “Pedimos que os associados só relatassem casos concretos, com nome e sobrenome, ou seja: precisavam dizer onde estava acontecendo e qual o consumidor impactado”, explicou. Muitos consumidores não aceitaram que os dados fossem repassados, por receio de conflito com a concessionária local.
A cartilha em elaboração poderá ajudar a esclarecer de forma didática o que pode ou não ser feito, quais informações as distribuidoras podem exigir ou não.
A Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee) informou que foi comunicada sobre os dados da Abraceel na semana passada. “Estamos analisando junto com as empresas, para analisar e verificar. Nosso objetivo é que os problemas, caso existam, sejam superados”, disse Marcos Madureira, presidente da Abradee.
Mercado livre em crescimento
O número de reclamações é relativamente pequeno quando comparado com o total de migrações registrado este ano. Apenas nos primeiros seis meses de 2023, a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) registrou 3.330 migrações de consumidores ao mercado livre, 52% a mais que o mesmo intervalo de 2022, chegando ao total de 34,4 mil consumidores livres no país. Em 2018, quando foi publicada uma portaria liberando a redução gradual dos limites de migração de consumidores ao mercado livre de energia, eram 12.933 consumidores.
Desde então, os limites de consumo foram reduzidos periodicamente, e a partir de janeiro de 2024 todos os consumidores de alta ou média tensão poderão escolher de quem comprar a energia, não mais obrigados a serem atendidos pelas distribuidoras. A baixa tensão, incluindo os consumidores residenciais, continua atendido exclusivamente por essas empresas, no mercado regulado.
“Tudo que acontece no mercado hoje tende a se potencializar a partir do ano que vem. Temos 165 mil consumidores aptos a migrar. Mas, estamos atuando para minimizar isso, esclarecendo tudo aos associados, que farão o esclarecimento aos consumidores”, disse Ferreira.
Abuso de poder
Dos 148 problemas relatados pelos associados da Abraceel, 79% são referentes a 2023, e em 71% dos casos a migração dos consumidores não foi concluída, com casos de desistência e atrasos. A CCEE é responsável por 5% dos casos, e o Bradesco, banco custodiante das operações financeiras do mercado, é apontado como causador de outros 5% dos problemas. A maior fatia, de 90%, seria relacionada às distribuidoras.
Segundo o levantamento da Abraceel, os problemas não são concentrados em algumas distribuidoras, mas estão divididos em todos os grupos e estados do país, de forma proporcional ao tamanho de seus mercados, com São Paulo na liderança, com 38%, seguido por Rio de Janeiro (10%), Rio Grande do Sul (10%) e Goiás (7%).
Das reclamações coletadas, 27% estão relacionadas à exigência desnecessária de documentação e processos. Na sequência, aparecem descumprimentos de prazos pelas distribuidoras, com 19%, e comunicação com a distribuidora, com 15%. A falta de informação dos contratos cativos é responsável por 8% das queixas, mesmo percentual de exigências de adequação de medição descabidas pelas distribuidoras.
Um problema preocupante apontado pela Abraceel, responsável por apenas 4% dos 148 casos relatados, se refere ao abuso de poder de mercado pelas empresas, que estariam compartilhando com a comercializadora do grupo a base de dados e o contato do consumidor que iniciou a denúncia com outra comercializadora, concorrente. Há ainda casos de comercializadora do grupo da distribuidora local que oferece tratamento diferenciado ao consumidor.
“Há casos em que o grupo oferece benesses e vantagens, do tipo ‘migra comigo que eu não exijo isso, o prazo é mais rápida’, ou fazendo uma proposta sob medida”, disse Ferreira. Nesses casos, a Abraceel está atuando coletando as informações e aconselhando os associados a irem à Justiça, uma vez que seria uma atuação ilegal. “Existe a Lei Geral de Proteção de Dados e tem a Lei de Defesa da Ordem Econômica”, lembrou.
Nesses casos, a Abraceel não pode atuar pelo associado, nem denunciar os casos. “Quem tem que fazer isso é o associado. Estamos atuando nisso com a informação”, disse Ferreira. Segundo o presidente da associação de comercializadores, a Abradee está participando dessas conversas, assim como a Aneel, para esclarecer as regras aos consumidores e evitar que novos casos como esse se repitam.
(Atualizado em 05/09/2023, às 9h40, para incluir posicionamento da Abradee e corrigir informação sobre participação da entidade na elaboração do material consultivo)