
Por : Alexandre Street*
O sistema elétrico brasileiro já foi predominantemente baseado em fontes de geração controláveis, ou flexíveis. Até 2010, cerca de 90% da geração era hidrelétrica e o resto era praticamente produzida por termelétricas, o que conferia uma elevada capacidade de controle da oferta de energia às oscilações de curto e longo prazo da demanda.
Para expandir a matriz energética com fontes renováveis e diversificadas, aproveitando sua alta controlabilidade, o Brasil incentivou, a partir de 2010, a instalação de parques eólicos e solares. O objetivo era mitigar o uso de termelétricas baseada em combustíveis fósseis e reduzir a dependência de hidrelétricas com grandes reservatórios, que têm maior impacto ambiental. O suporte inicial a essas tecnologias foi baseado em subsídios que buscavam acelerar sua maturidade competitiva.
No entanto, conforme retratado no artigo “A Saga da Expansão por Subsídios do Setor Elétrico” (Valor Econômico, coluna Opinião, 14 de fevereiro de 2025), o propósito original desses subsídios foi significativamente desvirtuado. Em vez de servirem como um impulso inicial para novas fontes, tornaram-se um mecanismo que distorceu a expansão do setor, promovendo o crescimento desenfreado e descoordenado de recursos não controláveis tanto na rede básica quanto na rede de distribuição.
Esse crescimento atingiu um ponto crítico em 15 de agosto de 2023, quando um apagão de grandes proporções afetou 25 estados e o Distrito Federal. Entre as causas do incidente, destacou-se a inadequação dos tempos de resposta informados pelas eólicas ao ONS (Operador Nacional do Sistema), que comprometiam a confiabilidade dos serviços de balanço de potência.
Como resposta, o ONS passou a realizar cortes operativos de geração eólica e solar de forma muito mais frequente. Já no nível da distribuição, o problema apareceu tanto na área comercial, com a GD desafiando o mercado regulado e reduzindo o consumo em milhares de megawatts, como na área técnica, com inversões de fluxos, afetando os sistemas de proteção e sobrecarregando transformadores. Assim, apesar de não existir alçada e capacidade técnica para o ONS realizar os mesmos cortes realizados na alta tensão, novos acessos à GD passaram a ser dificultados administrativamente por algumas distribuidoras.
Diante desse cenário, os leilões de capacidade surgiram como a solução do momento. Com forte participação de termelétricas e contratos muito similares aos antigos contratos de disponibilidade, a flexibilidade foi definida por fórmulas que priorizam fontes com menor tempo de resposta e geração mínima. Embora essa iniciativa tenha potencial para atrair novos geradores para contribuir com flexibilidade para o sistema, a estratégia tem limitações evidentes e importantes de serem observadas:
Primeiro, os leilões de capacidade imitam o modelo de contratos de longos prazo do ambiente regulado, que já se mostrou caro devido à correção desconectada do setor pelo IPCA, e excessivamente rígido para lidar com oscilações de médio e longo prazo da demanda. No entanto, o desenho de longo prazo continua sendo adotado a despeito da grande incerteza sobre a real demanda desses produtos no futuro e da tendência de queda dos custos das novas tecnologias de armazenamento e demais fontes.
Em segundo lugar, esses leilões criarão reservas de mercado, com certames exclusivos por fonte e a priorização de termelétricas com custos variáveis que podem ultrapassar o teto do PLD (Preço de Liquidação de Diferenças), sem atacar a raiz do problema: o excesso de subsídios e a falta de sinais de preços de mercado alinhados à realidade operativa. Além disso, os novos leilões conflitam com a ideia de expansão baseada em contratos mais curtos – geralmente de até cinco anos –, amplamente negociados no Ambiente de Comercialização Livre (ACL) e fundamentais para a lógica de liberalização do setor prevista para 2030.
Em contraste com a estratégia adotada pelo MME para obter nova flexibilidade via leilões de capacidade, há a agenda de reformas do desenho do mercado de curto prazo, prevista nos resultados da Consulta Pública nº 33 (CP33). Um dos passos mais importantes nessa direção é o desenvolvimento dos mercados sequenciais de tempo real. Nesses mercados, sempre que um gerador comprometido com a entrega de uma determinada quantidade de megawatts-hora não consegue cumprir sua obrigação, ele deve comprar seu déficit ao preço do mercado de tempo real, financiando, assim, os geradores que demonstraram flexibilidade ao ajustar seus níveis programados no dia anterior para compensar o desequilíbrio causado.
Assim, não importa se o déficit foi suprido por uma hidrelétrica ou por parques híbridos com armazenamento. O pagamento pelo custo causado será feito àqueles que resolveram o problema, independentemente da fonte. Além disso, esse pagamento será baseado no custo marginal de operação do sistema, incentivando, qualquer inovação que traga a flexibilidade necessária em cada momento. Dessa forma, o mercado de tempo real não apenas otimiza o uso dos recursos ao longo do dia com maior precisão, mas também cria um mecanismo isonômico e tecnologicamente agnóstico, remunerando todos aqueles que, por meio de sua flexibilidade, contribuam para compensar o déficit gerado pelos inflexíveis. Isso corrige muitas das injustiças atuais do nosso desenho de mercado.
Uma exceção ao atual afastamento de uma agenda pró-mercado para estímulo da flexibilidade no setor é o novo programa de resposta da demanda (RD) voluntária. Estabelecido pela Resolução Normativa ANEEL nº 1.040/2022, esse recurso, historicamente subestimado, parece ter finalmente encontrado seu timing e desenho apropriado no setor elétrico brasileiro. Além disso, a RD veio para demonstrar, de uma vez por todas, que os consumidores, de fato, respondem a sinais de preço.
Os novos programas de RD deram protagonismo ao grande consumidor nas discussões sobre como obter flexibilidade no setor elétrico. Inovando no formato pró-mercado, o ONS e a CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica) criaram um mercado explícito de ofertas para o despacho diário da RD, que já ultrapassou 9 GWh em outubro de 2024. Com a RD, o operador pode acessar um vasto e inexplorado potencial de flexibilidade industrial, remunerando serviços essenciais que, antes, eram desempenhados exclusivamente por geradores.
Remunera ofertas de consumidores por serviços prestados ao sistema de forma voluntária, com
base na demanda real do sistema por flexibilidade e com preços associados aos custos de
oportunidade do deslocamento de termelétricas mais caras e movidas a combustíveis fósseis.
Além disso, a RD revelou uma discrepância gritante no setor: enquanto o PLD (preço de liquidação de diferenças) frequentemente permaneceu abaixo de 100 R$/MWh, as térmicas acionadas fora dos modelos de formação de preço, no processo denominado pós-dessem, registravam custos variáveis acima de 1000 R$/MWh. Dessa forma, a RD mostrou que os preços do setor não refletem, nem de perto, os reais custos operacionais para o atendimento à carga como deveriam. Assim, os benefícios demonstrados pela RD ao sistema são claros:
- Remunera ofertas de consumidores por serviços prestados ao sistema de forma voluntária, com base na demanda real do sistema por flexibilidade e com preços associados aos custos de oportunidade do deslocamento de termelétricas mais caras e movidas a combustíveis fósseis.
- Cria uma nova e relevante receita para os consumidores, que são pagos acima dos seus custos de oportunidade por fornecer uma flexibilidade que estava muitas vezes disponível e não utilizada.
- Agrega ao menu do operador um produto de alto valor agregado, com respostas quase
instantâneas, e que, apesar de no Brasil ainda ser incipiente, em sistemas mais maduros, figuram em diversos mercados – de leilões de médio prazo a serviços ancilares. - Por fim, é um excelente promotor da mitigação de cortes de renováveis e da redução de emissões, além de abrir caminho para novas tecnologias e novos modelos de negócios que irão promover eficiência no uso dos recursos distribuídos.
Por fim, aqui chegamos ao último estágio da busca pela flexibilidade. Chegamos às distribuidoras, o “deep system”, a camada mais profunda e ainda inexplorada de flexibilidade do setor elétrico.
As distribuidoras representam a descoberta de um “pré-sal” da flexibilidade. Mas da mesma forma que são grandes as reservas, são também um pouco mais difíceis de serem exploradas. Os desafios passam por reformas regulatórias e por tecnologia.
Desenvolvedores podem criar novos produtos de GD com curtailment e armazenamento
automatizados via aplicativos especializados para evitar tarifas cada vez mais discrepantes entre energia injetada e consumida. Do outro lado, tarifas inteligentes podem engajar consumidores através de preços ou de sistemas de automação residencial e comercial. Todos esses serviços podem ser agregados e a flexibilidade resultante negociada em tempo real entre a distribuidoras e o ONS por intermédio de agregadores. No entanto, a chave para destravar essa revolução, que já aconteceu em diversos outros sistemas mais maduros que também sofreram com a falta de flexibilidade, está em estabelecer novos protocolos de comunicação entre o ONS e os operadores
de distribuição – os DSOs (distribution system operators) na sigla em inglês.
Embora a CP33 já tenha delineado uma agenda positiva para atrairmos a flexibilidade necessária para integrarmos mais renováveis com a menor dependência possíveis de subsídios e de alternativas baseadas em geração via combustíveis fósseis, parece estar no nosso DNA a ideia extrativista colonial. Seguimos extraindo as riquezas de um país com abundância de praticamente todos os recursos energéticos, mas sem utilizar um centavo deste benefício para estruturá-lo para um futuro sustentável. “Uma riqueza que não gera riqueza”. Resta a pergunta: vamos finalmente organizar esse mercado para que ele gere valor no longo prazo ou continuaremos reféns do imediatismo, das reservas de mercado e dos campeões da vez?
* Alexandre Street é professor associado do Departamento de Engenharia Elétrica da PUC-Rio
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