Opinião da Comunidade

A judicialização da CFURH: riscos regulatórios e impactos no Setor Elétrico Brasileiro

Marvin Menezes; Bianca Wolf ;
Patricia Dayrell  e
Nathalia Moraes do TAGD Advogados.
Marvin Menezes; Bianca Wolf ; Patricia Dayrell e Nathalia Moraes do TAGD Advogados.

Na última década, o Setor Elétrico Brasileiro (SEB) tem enfrentado crescente insegurança jurídica e instabilidade, em grande parte devido ao elevado número de judicializações que o acomete. A primeira grande onda de judicializações envolveu o Generation Scaling Factor (GSF) 1, com questionamentos sobre quem deveria arcar com o risco hidrológico. Mais recentemente, outro tema regulatório gerou controvérsia: a compensação de geradores renováveis pelo Curtailment2, um problema técnico relacionado à redução da geração de energia quando há excesso de oferta no sistema.

Ocorre que esses não são casos isolados, e é possível identificar uma tendência preocupante de judicialização de decisões técnicas tomadas pelas Agências Reguladoras, que detêm a expertise necessária para tratar essas questões. No caso específico da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), recentemente outro tema regulatório passou a ser questionado nos tribunais: a metodologia de cálculo da Compensação Financeira pela Utilização dos Recursos Hídricos (CFURH) devida pelas concessionárias de geração de energia hidrelétrica aos entes federativos.

De acordo com a tese recentemente suscitada por algumas centenas de municípios, o cálculo da CFURH seria feito com base em norma ilegal, visto que o Decreto nº 3.739/2001 contraria o que determina a Lei nº 7.990/1989, levando a uma arrecadação menor do que a devida e, consequentemente, a um repasse também menor para os municípios afetados.

Mais especificamente, a alegação desses municípios é a de que o referido Decreto amplia as deduções do valor do produto da energia produzida para além dos tributos e empréstimos compulsórios previstos na Lei nº 7.990/1989. Ademais, alguns desses municípios também questionam a previsão do Decreto para desconsideração da geração destinada ao mercado livre (ACL), devendo ser levado em consideração para fins de cálculo da Tarifa Atualizada de Referência (TAR), a qual é utilizada para a incidência da CFURH, apenas a geração destinada ao suprimento do mercado cativo (ACR).

Assim, o pleito dos municípios é para que seja declarada a nulidade parcial do art. 1º, §1º, do Decreto nº 3.739/2001, de modo que tanto os atos regulatórios da ANEEL que estabeleceram a TAR dos últimos cinco anos anteriores à distribuição das ações, como os futuros, sejam calculados considerando o valor médio da energia hidrelétrica produzida e comercializada no ACR e no ACL e com a dedução apenas dos tributos e empréstimos compulsórios.

À primeira vista, o que chama atenção desses processos é o longo período de inatividade antes de os municípios recorrerem ao Poder Judiciário. Isso porque o Decreto supostamente ilegal foi editado em janeiro de 2001, mas somente em meados de 2020 os municípios começaram a questioná-lo. Isto é, levou-se praticamente duas décadas para que os entes municipais começassem a se insurgir contra a metodologia de cálculo da CFURH praticada pela ANEEL. Portanto, é evidente que estamos diante de uma situação já consolidada, o que por si só afasta qualquer alegação de urgência para os pleitos de concessão de medidas liminares.

Além disso, em uma análise dos argumentos trazidos pelos municípios, é possível perceber que essas ações judiciais são uma mera tentativa de aumento arrecadatório, sem um embasamento jurídico e regulatório consistente. Apesar de a CFURH ser frequentemente associada à ideia de compensação por impactos ambientais ou territoriais, ela tem, na verdade, natureza jurídica de participação financeira no resultado da exploração de bem da União, nos termos do art. 20, §1º, da Constituição Federal.

A Lei nº 7.990/1989 e, posteriormente, a Lei nº 9.648/1998, consolidaram esse entendimento ao estabelecer que a CFURH incide sobre o valor da energia elétrica produzida, e não sobre o valor da energia elétrica comercializada ou faturada. Isso significa que elementos estranhos à atividade da geração, como os custos incorridos na transmissão de energia, não devem ser considerados na apuração da CFURH.

É importante notar que tanto a Lei nº 7.990/1989 quanto o Decreto nº 3.739/2001 foram editados em contextos históricos e regulatórios distintos, com quase uma década de diferença entre eles. Cada um desses normativos buscou alcançar a intenção do legislador em seu respectivo período, considerando as condições do SEB da época.

Na década de 1990, o SEB passou pelo processo de desverticalização, isto é, houve a separação das atividades de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica. Nesse período, surgiu também o ACL – até então, não havia a distinção entre os mercados cativo e livre – e a noção de que os custos de transporte de energia deveria ser tratado de forma separada (infraestrutura) ao custo de produção da energia (bem) não estava totalmente consolidada.

Assim, ao contrário do que sustenta os municípios, o Decreto nº 3.739/2001 não configura violação ao poder regulamentar da União Federal e muito menos distorção da natureza da CFURH como participação no resultado da exploração da geração hidrelétrica. Defender o contrário implicaria permitir que esses municípios recebessem uma parcela dos resultados financeiros de outras atividades, como a transmissão de energia, o que contrariaria a própria Constituição Federal. Afinal, o custo da energia conforme previsto nas faturas das distribuidoras, não corresponde ao valor que remunera a energia obtida pela exploração do potencial hidrelétrico, mas sim a uma combinação de diversos custos associados a outros elementos distintos.

Portanto, é possível concluir que a metodologia atualmente aplicada está em plena conformidade com a legislação, com a lógica e estrutura do SEB, afastando qualquer tipo de alegação de ilegalidade.

No entanto, é imperioso relembrar que ao Poder Judiciário impõe-se o dever de cautela na análise dos pedidos de suspensão das normas e de atos regulatórios, sob pena de ser violado o princípio da presunção de legalidade dos atos administrativos.

Ainda mais quando estamos diante de um efeito gigantesco em todo o SEB, visto que, de acordo com estimativa da ANEEL3, a procedência dessas centenas de ações judiciais causaria um impacto na ordem de R$ 1,5 bilhão por ano. Valor este que, apesar de ser cobrado das geradoras em um primeiro momento, seria repassado às distribuidoras e, ao final, a todos os consumidores cativos por meio dos reajustes tarifários, afetando a estabilidade do setor e previsibilidade regulatória.

*Marvin Menezes é sócio e titular da área de Energia; Bianca Wolf é coordenadora da área de Energia; Patricia Dayrell é associada da área de Energia e Nathalia Moraes é estagiária da área de Energia do TAGD Advogados.


[1] Fator de ajuste de garantia física das usinas hidrelétricas que compõem o Mecanismo de Realocação de Energia (MRE).

[2] Eventos em que a operação de geração de energia elétrica é temporariamente limitada ou interrompida devido ao ONS ter identificado restrições operacionais específicas no SIN, podendo ser classificado de acordo com o motivo que lhe deu causa: Razão de Indisponibilidade Externa, Razão de Atendimento a Requisitos de Confiabilidade Elétrica e Razão Energética.

[3] Conforme se depreende da contestação apresentada pela ANEEL nos autos do processo nº1004617-29.2025.4.01.3400

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