A eventual adoção de preços por oferta no mercado de energia brasileiro é complexa e, para ser bem-sucedida, precisa passar por um período de transição com transparência e ampla discussão com a sociedade. Essa é a avaliação de especialistas que participaram nesta quarta-feira, 18 de outubro, de um evento realizado pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) e pela PSR, que foi contratada pela entidade para liderar o debate sobre a formação do preço de energia no Brasil.
O presidente da PSR, Luiz Barroso, listou diversos obstáculos para a implementação de preços por oferta, como a preocupação com potencial exercício de poder de mercado por grandes geradores e a existência de hidrelétricas de diferentes donos na mesma cascata. Os aprendizados de outros países, por sua vez, indicam caminhos que podem ser tomados no Brasil para mitigar esses problemas.
“Vamos analisar se o que a gente faz tem espaço para melhorar. Não vamos só comparar as alternativas, e sim fazer um trabalho profundo com a liderança da CCEE, revisitar o tema dentro do rigor técnico e acadêmico, e com transparência e comunicação”, disse Barroso.
O que é o Meta II
O debate sobre o preço de curto prazo tem relação com a eficiência do sistema elétrico, uma vez que ele reflete o equilíbrio entre a geração de energia e a demanda a cada instante. o Projeto Meta II, coordenado pelo Banco Internacional para Reconstrução de Desenvolvimento (Bird) e pelo Ministério de Minas e Energia (MME), tem um de seus pilares na formação de preço, a fim de estudar os possíveis desenhos de mercado e propor alternativas ou melhorias na metodologia vigente.
No Brasil, é adotado o preço por custo, no qual modelos computacionais chegam no valor da energia no mercado de curto prazo, o PLD. Muitos agentes, contudo, defendem a mudança para um preço por oferta, que vai refletir as condições de oferta e demanda, com assunção do risco pelo gerador.
“Não dá para falar em operação eficiente sem preço eficiente”, disse Christiano Vieira, diretor de Operação do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Segundo ele, o cenário atual, com a penetração cada vez maior de renováveis e a geração descentralizada em expansão, a variabilidade diária na geração traz desafios para a operação e deveria ter reflexos nos preços.
Próximos passos
Não necessariamente os estudos do Meta II vão concluir pela implementação do preço por oferta, e, mesmo se isso acontecer, a decisão final caberá ao poder concedente. “O consumidor hoje tem muita escolha, e acho que vale a pena termos maior clareza sobre os preços”, disse Talita Porto, conselheira da CCEE, durante o debate.
Dos US$ 38 milhões que o Bird disponibilizou para o Projeto Meta II, a CCEE garantiu uma fatia equivalente a R$ 33 milhões, aproximadamente, que vão custear quatro projetos até 2025. Um deles é sobre a formação de preço, para o qual a CCEE contratou a PSR para executar o projeto, que terá duração de 30 meses, até 2025.
“Vamos fazer um diagnóstico e propor aprimoramentos para o paradigma atual. O segundo objetivo é fazer a avaliação de diferentes mercados, preço por oferta e por custo, e avaliar vantagens, desvantagens e riscos, para que aí sim possamos qualificar a discussão e tomar decisões”, disse Rodrigo Sacchi, gerente executivo de Preços, Modelos e Estudos Energéticos da CCEE. Segundo ele, o terceiro objetivo será detalhar ao máximo o desenho de preço conveniente para as características brasileiras.
Poder de mercado
Em mercados com preço por oferta, em linhas gerais, cada agente submete a quantidade de energia que estaria disposto a gerar a determinado preço, de forma descentralizada. Um dos problemas está no exercício de poder de mercado, já que grandes geradores poderiam tirar oferta para forçar movimentos de alta, por exemplo, numa prática concorrencial desleal.
A característica do mercado brasileiro de buscar contratos de longo prazo de venda de energia (PPAs, na sigla em inglês), por sua vez, mitiga esses riscos. Segundo Barroso, quanto mais contratado está um agente, menos ele depende do preço de curto prazo e, portanto, tem menos interesse em manipular esses preços.
Para Richard Lee Hochstetler, diretor de Assuntos Econômicos e Regulatórios do Instituto Acende Brasil os riscos existem, mas, havendo monitoramento do mercado é possível implementá-lo de forma segura, com a vantagem de reduzir a assimetria de informação no mercado de energia, já que hoje nem todos os agentes são capazes de rodar os modelos computacionais para encontrar os preços futuros.
“O mercado tem que ter um grau de liberdade para fazer ofertas e definir preços, mas isso precisa ser monitorado e alguma intervenção precisa ser feita para garantir a sustentabilidade”, disse Sacchi.
Hidrelétricas na mesma cascata
Outra crítica é com relação ao predomínio de hidrelétricas de donos diferentes compartilhando a mesma cascata, o que é visto como uma dificuldade adicional à mudança no preço por oferta.
Para isso, os especialistas citaram diversas soluções, como a implementação de reservatórios virtuais, que desacoplam os mundos comercial e físico de energia. “No comercial, os agentes negociam e fazem ofertas, e no físico a operação é feita separadamente”, explicou Dorel Ramos, professor do Departamento de Engenharia de Energia e Automação Elétricas da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). Segundo ele, é uma metodologia possível, ainda que complexa, já que a energia final disponível no mundo comercial precisa ser a mesma disponível no mundo físico.
Outra forma é instituir que cada cascata faça lances únicos, em comum acordo de todos os donos das usinas. “Há interesse de todos no melhor resultado, pode ser algo mais eficiente do que se cada agente tiver a liberdade de fazer a oferta individual”, disse Dorel.
“Eu acho bom que o Brasil não tenha pulado para despacho por oferta desde o início, teríamos vários problemas”, disse Hochstetler. Segundo ele, com os estudos aprofundados agora, se chegará no modelo mais adequado e com uma transição adequada. O uso de “bandas” de variação nos preços por oferta com base no custo, por exemplo, poderia ser uma transição, para o especialista.
Aprendizados internacionais
Durante o evento, os especialistas que participaram destacaram as soluções encontradas por outros países, que oferecem aprendizados ao Brasil, embora não necessariamente respostas prontas.
“Temos buscado sair desse paradigma de olhar só o Brasil. Cada vez mais a matriz brasileira se aproxima e se distancia de características de diversos países”, disse Angela Livino, diretora da Empresa de Pesquisa Energética (EPE).
Barroso, da PSR, lembrou que o Chile, que sempre teve formação de preço por custo, está debatendo mudar para preço por oferta, ao mesmo tempo em que a Colômbia sempre teve preço por oferta e estuda mudar para custo. “El Salvador começou a formar por oferta, teve problemas com poder de mercado e migrou para custo. São casos bastante relevantes que servem para percebermos que a questão não é fácil”, disse.
O preço por oferta no Brasil existe?
Além dos casos internacionais, os estudos também devem olhar para os “mercados secundários por oferta” que já existem no Brasil, disse Erik Rego, professor da USP e especialista da PSR. Ele lembrou de 2021, quando o Ministério de Minas e Energia (MME) publicou a Portaria 17 e contratou oferta adicional, por preço, para atrair geradores.
A exportação de energia para Argentina e Uruguai também segue a lógica de preço por oferta, já que a entrega varia do preço ofertado por esses países. Outro exemplo foi o Programa de Redução Voluntária da Demanda, quando agentes ofereceram os preços pelos quais estavam dispostos a reduzir seu consumo.
“O agente indiretamente está formando preço. Quando ele indica para a Aneel que tem um PPA, que está fazendo a obra, apresenta um cronograma, ele indica a expansão da oferta, e o preço cai”, disse Erik.
Dupla contabilização
Outra discussão se refere à “dupla contabilização”, ou mercado vinculante, quando o gerador não entrega toda a energia que se comprometeu a vender e fica exposto ao preço de curto prazo, com a obrigação de pagar o gerador que de fato entregou a energia, o que incentiva o agente a precificar melhor o risco. “O Brasil não fez isso no passado, mas hoje com a mudança da matriz e entrada das renováveis, essa discussão é muito relevante”, disse Barroso.
Para Sacchi, da CCEE, a questão da dupla contabilização pode ser implementada em ambos os modelos de formação de preço, já que atualmente há ineficiência do sinal econômico no mercado. Ele lembrou do pleito de hidrelétricas, que pedem um ressarcimento pelos serviços prestados no controle da flutuação de carga. “Essa remuneração que eles pedem, fora do preço, poderia ser endereçada com a dupla contabilização”, disse.