Edvaldo Santana escreve: Sem tempo a perder

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Publicado

03/Jul/2020 16:18 BRT

Por Edvaldo Santana

Em 2013, ao deixar a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) depois de 14 anos, enviei para todos os servidores um e-mail cujo título era “tempo perdido”. Os 13 anos anteriores, de muito trabalho para construir um mercado e uma regulação eficientes, foram superados pelos erros da Medida Provisória (MP) 579. Tudo teria sido jogado no lixo. 

Em março deste ano, arriscando-me a antecipar os efeitos da pandemia, escrevi que seria essencial a coordenação do governo. Era esperada a brutal queda no consumo de energia. Foi assim na Itália, Espanha, Inglaterra e Estados Unidos. Não seria uma “gripezinha”. Em um setor organizado sob a forma de rede, a redução de consumo contagiaria a todos os segmentos. Se comprovada essa perspectiva de eventuais desequilíbrios, ela precisaria ser minimizada. Era que eu entendia. 

Longe da unanimidade. Algumas associações entendiam que o mercado se resolveria, que os contratos continham as soluções desejadas. Porém, assim que as primeiras distribuidoras o acionaram, estes deixaram de ser eficazes. A tese (vencedora) era que a aplicação da cláusula de força-maior refletiria nos vários elos ao longo da rede, o que deveria ser evitado. Pronto. Era o que o Poder Concedente necessitava para criar mais um encargo. Substituiu a Conta-ACR pela Conta-Covid. Simples assim.

A Conta-Covid é mais uma norma a ocupar fascinante coleção, na qual já estão enfileiradas a MP 579, a Resolução 03/2013 do Conselho Nacional de Política Energética, a redução do teto do Preço de Liquidação de Diferenças (PLD), em 2015, quando a oferta era escassa, a energia de reserva que não é reserva, a repactuação do risco hidrológico, a Conta-ACR e a indenização das transmissoras. 

O que essas pérolas regulatórias têm em comum? A criação de subsídios, cruzados ou não, e, lógico, o aumento da tarifa. Já falei sobre isto em artigos de jornais e em diferentes redes sociais. Por exemplo: devido à atípica organização do mercado, em que os mesmos grupos econômicos, com diferentes “chapéus”, atuam no Ambiente de Contratação Livre (ACL) e no Ambiente de Contratação Regulada (ACR), não é desprezível o montante de subsídio deste para aquele, motivado pela Conta-Covid.

E a Conta-Covid resulta em um erro conceitual, quase padrão, com lugar de honra no elenco de nossas idiossincrasias. Os consumidores, por meio de um encargo, pagarão pela energia não consumida, dado o isolamento social compulsório. As contas de luz correspondentes serão acrescidas de PIS, COFINS e ICMS. Em outras palavras, os consumidores pagarão um adicional bilionário, a título de contribuições e impostos, por uma energia que não utilizaram, isto é, por um serviço que não lhes foi prestado. E sem desequilíbrio comprovado. É ou não uma bizarrice regulatória?

É inexplicável que, em tal cenário, o Poder Concedente não tenha exigido uma contrapartida para o consumidor. Quem sabe um mero refinamento dos contratos, de modo a copiar o que de melhor existe no ACL, como um mecanismo para assegurar flexibilidade ao consumo, para mais e para menos.  

O resultado, claro, não é bom, mas temos que olhar o futuro. Tempo perdido, título do meu e-mail de 2013, é o nome de uma bela canção de Renato Russo. “Não tenho mais o tempo que passou. Mas tenho muito tempo. Temos todo tempo do mundo”. Que uma pequena parte desse tempo seja aproveitada para corrigir o que tanto há de errado no setor elétrico. Não há mais tempo a perder.


Edvaldo Santana é Doutor em Engenharia de Produção e ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

   

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