Por Marcela Assis e Thiago Riccio
Os efeitos negativos da “Crise do GSF” para o setor elétrico são inegáveis. A judicialização do tema, com imediatas repercussões nas operações do mercado livre (externalizadas pela não liquidação financeira no Mercado de Curto Prazo (MCP) de débitos que ultrapassam 8 bilhões de reais), demonstra que o problema é complexo e demanda tratamento pelo poder público.
Nessa linha, foi publicada a lei nº 14.052/20, que reconhece aos titulares das usinas hidrelétricas participantes do Mecanismo de Realocação de Energia (MRE) o direito à compensação pelos efeitos negativos decorrentes do período de integração ao mecanismo dos empreendimentos indicados pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) como estruturantes (UHE Jirau, Belo Monte e Santo Antônio).
Os motivos para a compensação já são conhecidos pelo setor: com a entrada de empreendimentos estruturantes no MRE, a exposição negativa dos demais integrantes ao MCP aumentou sensivelmente. Isso porque, além de terem ocorrido atrasos na entrada em operação de instalações de transmissão, o que impossibilitou o escoamento de energia elétrica pelas novas usinas estruturantes, o valor da garantia física outorgada a elas não corresponde aos valores da sua efetiva agregação ao Sistema Interligado Nacional (SIN) na fase de motorização.
Esses dois fatores agravaram a crise, na medida em que aumentaram a diferença entre a soma das garantias físicas outorgadas aos geradores hidrelétricos e a soma da energia por eles efetivamente gerada, forçando um GSF < 1. Em outras palavras, as usinas estruturantes passaram a participar do rateio de geração hidrelétrica no MRE muito embora a sua efetiva contribuição para o SIN tenha ocorrido em patamar aquém do considerado no rateio.
A lei nº 14.052/20 prevê que a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) calculará os impactos negativos desses dois efeitos levando em conta a geração potencial dos empreendimentos hidrelétricos com prioridade de licitação e implantação, caso não existissem as restrições ao escoamento, as diferenças entre suas garantias físicas consideradas e efetivas, bem como os preços de energia.
A nova solução para o GSF é louvável e, inclusive, chegou a ser celebrada pelo setor. O problema surge quando a lei determina que a compensação ocorrerá por meio da extensão dos prazos de outorga dos participantes do MRE. Tal solução atende apenas às autorizadas e às concessionárias de geração (ou seja, as PCHs e UHEs), excluindo as centrais geradoras hidrelétricas (CGHs), cujo regime de registro, como é sabido, não está sujeito a um prazo de outorga tal qual o aplicável às autorizadas e às concessionárias.
A própria minuta da resolução divulgada pela Aneel para regulamentar o cálculo da compensação exclui expressamente as CGHs da solução (art. 1º, §3º, III), fato que não passou desapercebido pela comunidade. Durante a consulta pública 56/2020, agentes e associações propuseram alternativas, como a recontabilização do débito na própria Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) e a possibilidade de utilização dos créditos decorrentes da compensação para abater débitos do agente perante a União.
Descartando as alternativas propostas, a Aneel publicou em 3 de dezembro a Resolução nº 895/20, que traz uma versão ajustada da minuta originalmente divulgada. Ela manteve, contudo, a disposição de que as centrais geradoras que não são objeto de outorga (isto é, as CGHs) não serão beneficiadas pela compensação.
A dimensão da exclusão fica clara ao se consultar os dados do Sistema de Informações de Geração da agência. Conforme dados consultados em 3 de dezembro, existem 751 CGHs no Brasil. Embora elas correspondam a apenas 0,40% da potência outorgada, numericamente, representam mais do que 7,5% do total de centrais geradoras do país.
Apesar dos esforços do governo federal em criar uma solução para a “Crise do GSF”, nota-se que ainda será preciso amadurecer o debate sobre o tema. Uma solução só pode ser considerada definitiva quando levar em consideração todos os agentes afetados. Tendo as CGHs sido ignoradas, seus titulares terão de aguardar uma nova solução, seja pela via legislativa, seja judicial.
Thiago Riccio é sócio da equipe de Direito Público e Regulatório do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados, mestre em Direito Administrativo pela UFMG e especialista em Direito da Energia pelo IBDE.
Marcela Assis é advogada da equipe de Direito Público e Regulatório do Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados, pós-graduanda em Direito da Energia pelo CEDIN.
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