Opinião da Comunidade

Pobreza energética e políticas tarifárias: Impactos jurídico-constitucionais

Arte mostra dois executivos autores do artigo.
Arte mostra dois executivos autores do artigo.

Por: Daniel Steffens e Isaaque Félix*

A pobreza energética representa um dos desafios mais urgentes no cenário brasileiro, não apenas sob o prisma socioeconômico, mas como uma questão diretamente relacionada aos direitos fundamentais previstos na CF/88. Tal condição, que afeta parcelas significativas da população, compromete a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e a realização de outros direitos essenciais, como saúde, educação e moradia (art. 6º).

Sob uma perspectiva jurídico-constitucional, a dignidade da pessoa humana constitui um norte central para a formulação de políticas públicas voltadas ao enfrentamento da pobreza energética. Embora o acesso à energia elétrica não esteja explicitamente positivado na Carta Magna, ele pode ser interpretado como um direito fundamental implícito, essencial à concretização de condições materiais adequadas de vida.

A pobreza energética também reflete desigualdades estruturais que afetam especialmente mulheres, crianças e adolescentes, evidenciando violações ao princípio da proteção prioritária a grupos vulneráveis (art. 227). A utilização de fontes rudimentares de energia – como o carvão – coloca essas populações em situações de risco à saúde e à segurança, contrariando ainda compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, como o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Diante desta necessidade, algumas medidas, instituídas por meio de políticas públicas de benefício tarifário custeada na tarifa de energia dos consumidores remanescentes, foram implementadas.

Em 2003 – Programa Luz para Todos (LpT):

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Instituído pelo Governo Federal através do Decreto nº 4.873 de 2003, o LpT objetiva proporcionar acesso à energia elétrica para as zonas rurais, ampliando a abrangência do anterior Programa Luz da Terra do estado de São Paulo. O LpT distingue-se por incluir áreas indígenas, quilombolas e a região amazônica, alcançando assim uma dimensão nacional.

Um aspecto crucial do LpT é sua estrutura de financiamento. Diferentemente de seu precursor paulista, o LpT foi implementado com maior sucesso, uma vez que os custos das obras não exigem aporte financeiro do consumidor interessado, nem financiamento bancário, sendo custeados pela estrutura tarifária de energia através da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE).

A CDE, instituída como subvenção econômica pela Lei nº 10.438 de 2002, é integrada à tarifa de energia cobrada dos consumidores já conectados ao sistema. O programa possibilitou uma fase de extensivas obras de expansão das redes de distribuição nas zonas rurais de praticamente todas as concessionárias de energia do país, levando linhas de distribuição a comunidades e áreas previamente desprovidas de acesso à energia elétrica.

Dada a eficácia da implementação, o programa passou por várias revisões de metas e prorrogações de prazo, permanecendo vigente em 2024, com foco principal nas regiões Norte e Nordeste do país. Em 2024, graças ao programa, o Brasil atingiu a impressionante marca de 95% das famílias brasileiras com acesso à energia elétrica.

Em 2010 – Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE):

Instituída pela Lei nº 10.438 de 2002 e regulamentada pela Lei nº 12.212 de 2010 e pelo Decreto nº 7.583 de 2011, a Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE) visa reduzir o custo da energia elétrica para famílias de baixa renda, quilombolas e indígenas já conectadas à rede de energia. De forma escalonada, esta política pública aplica descontos na conta de luz dos consumidores elegíveis conforme a seguinte estrutura:

  1. Para consumidores de baixa renda:
    • Desconto de 10% para consumos entre 101 e 220 kWh;
  • Desconto de 40% para consumos entre 31 e 100 kWh;
  • Desconto de 65% para consumos até 30 kWh.
  • Para consumidores quilombolas e indígenas incluídos no Cadastro Único:
    • Desconto de 10% para consumos entre 101 e 220 kWh;
    • Desconto de 40% para consumos entre 51 e 100 kWh;
    • Desconto de 100% para consumos até 50 kWh.
  • Assim como no LpT, os clientes incluídos no Cadastro Único são automaticamente elegíveis a este benefício, facilitando o acesso das famílias ao desconto tarifário. A TSEE também é custeada pela CDE, impactando todos os consumidores de energia em âmbito nacional.

    Em 2021 – Inclusão Automática de Famílias na TSEE:

    A Lei nº 14.203 de 2021 determinou que famílias incluídas no Benefício de Prestação Continuada (BPC) fossem automaticamente cadastradas na TSEE. Com isso, o alcance da política pública aumentou significativamente a partir de 2022, proporcionando o desconto tarifário sem a necessidade de ação dos consumidores para comprovar a elegibilidade. Segundo informações da ANEEL, devido ao cadastramento automático instituído pela lei, o custo da rubrica cresceu de R$ 3,656 bilhões em 2021 para R$ 5,430 bilhões em 2022, representando um impacto de 48% no encargo sentido pelos consumidores remanescentes através dos reajustes e revisões tarifárias em 2022.

    Considerando que, segundo dados da Aneel [1], a tarifa média de aplicação na classe residencial convencional no Brasil é de R$ 735,31 que corresponde a cerca de 48% do salário mínimo nacional (R$ 1.518,00 conforme Decreto nº 12.342, de 30 de dezembro de 2024), estas medidas buscam possibilitar não só o acesso à energia elétrica, mas a devida adequação do valor tarifário médio à renda dos consumidores categorizados como baixa renda.

    A erradicação da pobreza energética requer ainda uma abordagem mais ampla, que considere medições multidimensionais da exclusão energética. Essas medições podem servir como instrumentos jurídicos para embasar ações afirmativas e intervenções regulatórias, orientadas pelo princípio da igualdade material (art. 5º, caput). Ademais, há a necessidade de harmonizar os critérios tarifários com a capacidade contributiva das famílias vulneráveis, respeitando a progressividade exigida no sistema tributário (art. 145, § 1º).

    Por fim, o enfrentamento da pobreza energética constitui uma exigência jurídico-constitucional inadiável, tanto pela necessidade de cumprir o art. 3º, III, que preconiza a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais, quanto pelo dever de garantir a função social dos serviços públicos. Embora programas como o Luz Para Todos e a Tarifa Social de Energia Elétrica sejam passos fundamentais nesse caminho, eles ainda não conseguem eliminar as assimetrias tarifárias que impactam desproporcionalmente as classes mais desprivilegiadas.

    A construção de uma política tarifária mais equitativa exige ações continuadas, que harmonizem os custos da energia à capacidade contributiva das famílias vulneráveis e promovam intervenções regulatórias baseadas no princípio da igualdade material. Nesse sentido, a atuação coordenada das instituições regulatórias e governamentais é essencial para assegurar não apenas o acesso universal, mas também a justiça tarifária, reduzindo as desigualdades estruturais e pavimentando um futuro mais justo e igualitário para todos os brasileiros.


    [1] Aneel – Tarifas Residenciais. https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiZDFmMzIzM2QtM2EyNi00YjkyLWIxNDMtYTU4NTI0NWIyNTI5IiwidCI6IjQwZDZmOWI4LWVjYTctNDZhMi05MmQ0LWVhNGU5YzAxNzBlMSIsImMiOjR9. Acesso em 09/01/2025.

    * Daniel Steffens é sócio da Área de Energia e Infraestrutura do Urbano Vitalino Advogados; Isaaque Félix é analista de Regulação Estratégica de Mercado SR na CPFL.

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