Por: Victor Gomes*
Há cerca de duas décadas, o Brasil tinha uma matriz elétrica composta majoritariamente por usinas hidrelétricas com reservatórios, que proporcionavam ao Sistema Interligado Nacional (SIN) grande capacidade de armazenamento de energia, equivalente a anos de consumo médio do sistema.
As entidades responsáveis pelo planejamento setorial se preocupavam com a expansão de geração para atendimento ao aumento do consumo médio de energia ao longo do ano. No jargão, convencionou-se dizer que o sistema era restrito em “energia”.
Nos últimos 20 anos, muita coisa mudou. A impossibilidade de construção de novas hidrelétricas com reservatórios fez com que a capacidade de armazenamento das hidrelétricas se mantivesse praticamente estável, enquanto o consumo cresceu significativamente, reduzindo a autonomia do SIN. Esta redução trouxe novos desafios para o planejamento setorial.
O sistema, que era restrito apenas em “energia”, passou ao longo dos anos a ser também restrito em “capacidade”. Isso significa que o sistema precisa expandir não somente para atendimento ao crescimento do consumo médio, mas também para assegurar a capacidade de atendimento à demanda máxima instantânea. Por essa razão, em 2019, o CNPE editou a Resolução 29/2019, pela qual instituiu o critério de garantia de suprimento de capacidade e, em 2021, após adequações legislativas promovidas pela Lei nº 14.120/2021, foi realizado o primeiro Leilão de Reserva de Capacidade, para contratação de potência para o SIN.
No entanto, recentemente, o Brasil começou a observar uma vertiginosa expansão de novas fontes de energia renovável, em especial, a partir das fontes solar e eólica, ao seu mix elétrico. Em setembro de 2024, as fontes solar e eólica em operação (incluindo GD) somaram 80 GW de capacidade instalada, sendo que 60 GW entraram em operação nos últimos cinco anos. Essas fontes intermitentes, embora altamente desejáveis, por serem renováveis, trouxeram consigo novos desafios operacionais.
Nessa linha, dentro de um único dia, em curtos intervalos de tempo, tem-se observado que as usinas eólicas podem variar sua geração em cerca de 20 GW e as solares em mais de 50 GW. Essa variação altera o perfil da carga líquida do SIN (que é a carga descontada da geração não controlável), fazendo com que o sistema precise cada vez mais de recursos que sejam capazes de aumentar (e reduzir) rapidamente a geração do sistema dentro do mesmo dia. A possibilidade de variação da geração, de forma controlável, para atender a variações nos requisitos do sistema é chamada, por especialistas, de flexibilidade.
As usinas hidrelétricas, que tradicionalmente garantiam a demanda por flexibilidade, ou seja, o atendimento às variações intradiárias dos requisitos do sistema com certa tranquilidade, nos últimos anos, mas principalmente desde meados de 2023, têm que contar com a complementação das termelétricas de rampa rápida.
Trata-se de um novo paradigma setorial, em que usinas termelétricas com partida rápida vem sendo chamadas pelo ONS quase que diariamente para gerar entre 2 horas a 8 horas diárias.
Como exemplo, as quatro usinas termelétricas flutuantes da Karpowership, localizadas na Baía de Sepetiba, foram despachadas mais de 100 vezes nos últimos 12 meses, em períodos curtos com rápida rampa, proporcionando serviços relevantes ao sistema, como adequacidade, segurança e resiliência. O gráfico abaixo ilustra os novos serviços que as termelétricas vêm prestando desde 2023:
Nesse sentido, o SIN agora demanda usinas capazes de partidas rápidas para complementar as lacunas deixadas pelas fontes intermitentes. Desde 2023, essa necessidade tem se tornado cada vez mais evidente, especialmente em dias de elevada carga, quando a variação das fontes renováveis exige uma resposta ágil e eficiente.
Como reflexos dessa necessidade, recentemente foi editada a Portaria Normativa MME 88/2024, que busca dar incentivos econômicos para o aumento de flexibilidade no SIN. Além disso, a EPE vem desenvolvendo para definição do novo critério de garantia de suprimento relacionado à flexibilidade, que deve ser submetido ao CNPE em 2025. Também recentemente, o MME publicou as diretrizes do Leilão de Reserva de Capacidade de 2025, em que foram trazidos requisitos técnicos mais estritos de rampa e outros parâmetros de restrições técnicas para novas usinas termelétricas, corroborando com a necessidade de flexibilidade no sistema.
Nesse cenário, as termelétricas a gás natural despontam como a solução ideal. Além de sua capacidade de rápida mobilização, essas usinas (GNL-to-power e gas-to-power) têm a vantagem de emitir menos carbono em comparação com outras fontes térmicas, alinhando-se assim com os objetivos da transição energética. O gás natural, portanto, não é apenas uma fonte de energia transitória; ele desempenha um papel crucial na transição justa, em que a segurança energética e a acessibilidade para todos são pilares fundamentais.
Além de proporcionar atendimento à carga 24 horas por dia, segurança e resiliência, as termelétricas a gás natural oferecem a flexibilidade de que o SIN tanto necessita. Com a possibilidade de serem acionadas em curtos intervalos de tempo, elas garantem que o sistema possa manter sua estabilidade e confiabilidade mesmo em face das oscilações típicas das fontes renováveis. Essa flexibilidade é especialmente importante em um cenário em que a demanda energética é crescente e a capacidade de resposta rápida pode significar a diferença entre a manutenção do fornecimento ou a ocorrência de apagões.
É importante ressaltar que essa mudança de paradigma na operação do SIN não deve ser vista como um retrocesso em relação à busca por um sistema elétrico mais limpo e sustentável. Ao contrário, a integração das termelétricas a gás natural como elementos de suporte fortalece o caminho para uma matriz energética cada vez mais diversificada e resiliente. Elas complementam e até mesmo estimulam o crescimento das fontes renováveis, assegurando que a transição energética ocorra de forma equilibrada, sem comprometer a segurança energética do país.
Em conclusão, o Brasil vive um momento crucial em sua jornada energética. A mudança de paradigma na operação do SIN reflete a complexidade crescente de um sistema que precisa equilibrar sustentabilidade, segurança e acessibilidade. Os novos desafios globais relativos ao aumento de demanda por eletricidade, impulsionados pelo crescimento dos veículos elétricos, inteligência artificial e urbanização, aumentarão ainda mais essa complexidade nas próximas décadas.
As termelétricas a gás natural surgem como protagonistas nessa nova era, garantindo que a energia continue fluindo de maneira segura e confiável, enquanto avançamos em direção a um futuro mais sustentável. Reconhecer e valorizar o papel dessas usinas é essencial para garantir uma transição energética justa e eficaz, de modo a assegurar que todos os brasileiros tenham acesso a uma energia segura e de qualidade.
*Victor Gomes é Head de Relações Institucionais e Novos Negócios da Karpowership
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