Por: Marisete Pereira*
Em um país onde a água é um recurso abundante, é surpreendente que ainda permitamos que ela escorra pelas comportas das hidrelétricas sem ser plenamente aproveitada. Em vez de deixar que essa energia, não utilizada para o atendimento do Sistema Interligado Nacional (SIN), escorra literalmente pelos nossos dedos, devemos direcioná-la para novas transações comerciais, contribuindo para o consumo sustentável dos nossos vizinhos e convertendo o que poderia ser apenas uma oportunidade perdida em um ativo econômico valioso.
Imagine que as usinas hidrelétricas funcionam como grandes cofres repletos de um valioso tesouro líquido. Quando esses cofres ficam cheios demais, é necessário liberar parte da água para evitar transbordamentos. Podemos simplesmente abrir as comportas e deixar essa água seguir seu curso, ou podemos adotar uma abordagem mais estratégica: utilizá-la para gerar energia destinada à exportação. Com a publicação da Portaria Normativa 49/2022, surgiu a oportunidade de comercializar essa energia adicional, conhecida como Energia Vertida Turbinável (EVT). Essa iniciativa promove eficiência energética dos nossos ativos de geração e transmissão e beneficia não apenas os investidores e concessionários, mas também estados e municípios, e principalmente, os consumidores, através da redução das tarifas de energia elétrica.
Em 2023, o Brasil exportou 844 megawatts médios de energia elétrica para a Argentina e Uruguai, destes 490 megawatts da geração hidroelétrica, resultando em receita de R$ 782 milhões de reais. Parte dessa receita beneficiou estados e municípios, que receberam por meio da Compensação Financeira pela utilização de recursos hídricos (CFURH), cerca de 30 milhões. De acordo com a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), esse foi o maior volume de exportação de energia da história do país. Esse exemplo evidencia como a exportação de energia que seria vertida, pode ser uma estratégia inteligente para aproveitar a riqueza dos nossos reservatórios.
Contudo, essa exportação representou apenas 8% do total da EVT de 2023. Há, portanto, espaço significativo para melhoria e evolução, e o momento é estratégico para a implementação dessas mudanças. Trata-se da possibilidade de antecipação da exportação de EVT com maior antecedência e eficiência do aproveitamento do recurso hídrico, diferentemente do que foi praticado em 2023, quando a exportação foi concretizada apenas a partir de decisões diárias observando vertimento turbinável já em curso.
Esta é uma oportunidade única para aprimorar as regras e modernizar o arcabouço normativo, permitindo uma antecipação das decisões que otimizem os resultados futuros. Com uma abordagem planejada e inteligente, as hidrelétricas podem não apenas atender de maneira segura às demandas internas do Brasil, mas também, ao longo do ano, fornecer energia de forma estratégica aos países vizinhos, aproveitando o potencial das projeções de vertimento da energia para maximizar os benefícios sociais e econômicos, especialmente no próximo período chuvoso.
A possibilidade de utilizar essa energia adicional para o mercado internacional representa uma oportunidade valiosa para fortalecer a integração energética com os países vizinhos, promovendo o fornecimento de energia limpa e renovável. No entanto, é essencial que a prioridade permaneça no atendimento ao sistema brasileiro, garantindo nossa segurança energética. Nesse contexto, o aprimoramento do procedimento competitivo para viabilizar a antecipação da exportação de EVT é não apenas uma medida estratégica, mas também necessária.
Essa prática, especialmente em cenários hidrológicos favoráveis como o vivenciado no período chuvoso de 2022/2023, permite que o Brasil continue transformando seu potencial hídrico em uma significativa fonte de crescimento econômico para nossa sociedade e para os países vizinhos. Além de reduzir os custos de energia para os consumidores brasileiros, ela posiciona o país de maneira vantajosa no mercado internacional de energia, aproveitando ao máximo os recursos disponíveis.
Enfim, a água, que vale ouro, não deve ser apenas liberada, mas sim aproveitada ao máximo, transformando-se em energia que possa beneficiar o Brasil, nossos parceiros comerciais e, principalmente, os consumidores que arcam com uma conta cada vez mais onerosa. É essencial que gerenciemos nossos recursos com eficiência, não apenas nos processos produtivos, mas também no planejamento e na operação do sistema. Desperdiçar água, simplesmente vertendo-a nas hidrelétricas, é desperdiçar um recurso natural valioso que o Brasil possui em abundância. Como se diz por aí, “dinheiro não aceita desaforo,” e o mesmo vale para nossos recursos naturais.
*Marisete Pereira é presidente da Associação Brasileira das Empresas Geradoras de Energia Elétrica (Abrage)
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