Opinião da comunidade

Hora de rever: como a geração distribuída está impactando o setor elétrico brasileiro

Victor iOcca e Natália Moura Oliveira, da Abrace
Victor iOcca e Natália Moura Oliveira, da Abrace

Por: Victor iOcca e Natália Moura*

Em 2012, quando a Aneel publicou a Resolução Normativa nº 482, havia a expectativa de que as micro e minigeração distribuída (GD) seriam tecnologias caras e que precisariam de muitos incentivos para serem adotadas. Por isso, não se vislumbravam custos elevados advindos do modelo de cobrança de tarifas escolhido, em que havia a compensação da energia consumida com a energia injetada, na proporção de um para um. Esse modelo, conhecido como net metering, permite que consumidores que utilizam micro e mini GD paguem apenas uma fração dos custos dos serviços de distribuição e transmissão disponibilizados para seu atendimento. Também possibilita que esses consumidores evitem arcar com custos rateados entre todos os usuários, como é o caso dos encargos para garantir a segurança do sistema e para cobrir políticas públicas.

Na época da seleção desse modelo, esses problemas estavam mapeados. Contudo, acreditava-se que a GD se expandiria mais lentamente, tornando razoável a política de fortes subsídios. Com o avanço na expansão da GD e a obrigação de reavaliação da norma, a Aneel percebeu os custos significativos dos incentivos para os demais consumidores e seu potencial de crescimento. Assim, propôs uma transição para um modelo mais sustentável. No entanto, essa alteração enfrentou grande resistência do setor, que pressionou pela criação de um marco legal. Em 2022, foi promulgada a Lei nº 14.300, que encerrou anos de discussões sobre o tema na agência reguladora.

De acordo com a nova lei, após um longo período de transição, as unidades com micro e mini GD passarão a ser tarifadas segundo regras definidas pela Aneel. Essas regras deverão prever o pagamento integral de custos não relacionados diretamente à geração de energia elétrica, como os serviços de distribuição e transmissão e os encargos setoriais, além de considerar os benefícios da GD. Entretanto, até o momento, a Aneel ainda não definiu como essas regras serão implementadas, gerando incertezas no setor.

Durante o período de transição, os consumidores de energia elétrica continuarão arcando com pesados subsídios. Em 2024, por exemplo, conforme o Subsidiômetro da Aneel, os consumidores brasileiros subsidiaram cerca de R$ 7,6 bilhões para a micro e mini GD, além de uma perda de arrecadação das distribuidoras de aproximadamente R$ 3,9 bilhões, totalizando R$ 11,5 bilhões em incentivos em um único ano.

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A situação mais vantajosa na transição aplica-se às unidades com micro e mini GD existentes à época da publicação da Lei nº 14.300/22 e às que protocolaram pedidos de acesso à distribuidora até doze meses após sua publicação. Para esses casos, até 2045 continuam vigentes as regras antigas, em que a energia injetada na rede compensa a energia consumida, permitindo que esses consumidores evitem custos de políticas públicas socializados com os demais usuários, como a CDE, e participem de forma inadequada do rateio dos custos de infraestrutura de transmissão e distribuição.

Para os consumidores que apresentaram pedidos após 12 meses da publicação da lei, existem regras de transição em curso, que deverão encerrar-se entre 2029 e 2031. Essas regras representam uma tentativa do legislador de reduzir o impacto dos incentivos à GD sobre as receitas das distribuidoras e coibir práticas que utilizam a mini GD como alternativa para comercialização de energia com consumidores cativos, o que é proibido, mas ocorre por meio de arranjos que exploram a compensação de créditos.

Com regras de transição longas e o encarecimento da energia, a micro e mini GD seguem sendo excelentes investimentos. Já existem mais de 3 milhões de unidades consumidoras com GD instalada e quase 4,7 milhões compensando créditos. Das unidades com GD instalada, cerca de 785 mil se conectaram em 2024, mostrando que o marco legal trouxe segurança para os investimentos, com 35,6 GW em operação no país.

Porém, essa expansão acelerada e sem planejamento criou distorções graves na operação e no mercado de energia elétrica. A sobreoferta de energia, catalisada pelos subsídios, reduz o preço de longo prazo da energia elétrica, comprometendo a viabilidade de projetos que agregam qualidade à operação elétrica, como aqueles com flexibilidade e que são despacháveis. Ademais, a forte modulação natural da geração fotovoltaica tem levado a momentos de excedente na oferta, exigindo do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) medidas drásticas, como o corte na geração de grandes fontes intermitentes (eólicas e solares) e o vertimento turbinável nas hidráulicas.

As distorções são alarmantes: em um mesmo dia, o país desperdiça energia renovável por algumas horas e, ao mesmo tempo, gera energia por meio de térmicas a gás natural, carvão e diesel, para equilibrar a oferta e demanda e garantir a estabilidade do sistema.

Embora o marco legal da GD seja recente, precisa ser revisado para corrigir essas distorções. Deve-se reconhecer a contribuição dos projetos de GD para a segurança energética do Brasil, mas também é necessário observar os impactos negativos no custo operacional global. Todas as fontes de geração, independentemente do porte, devem contribuir para os custos de estabilidade do sistema. Por exemplo, o novo encargo de potência, que deverá superar R$ 35/MWh na próxima década, deveria ser pago por todos os usuários, inclusive pelas fontes de GD existentes. Também é crucial que o regulador avance rapidamente nas regras de gestão das redes elétricas em nível de distribuição. As distribuidoras, alinhadas com o ONS, devem ter autonomia e infraestrutura para operar suas redes, impondo cortes na GD em tempo real quando necessário.

O acúmulo de distorções no mercado de energia é preocupante, pois impacta tanto a transferência direta de subsídios quanto a segurança das redes elétricas. Neste contexto, é imprescindível que todos os agentes do setor reconheçam a necessidade de ajustes. Apenas com a colaboração de todos e o compartilhamento de responsabilidades será possível garantir a sustentabilidade e o equilíbrio do mercado de energia elétrica brasileiro.

Victor iOcca e Natália Moura Oliveira são, respectivamente, diretor e analista de Energia, na Abrace Energia, associação que representa os grandes consumidores de energia elétrica e gás natural.

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