
Por: Fernanda Tomé*
O debate sobre o gás natural no Brasil amadureceu. Depois de anos de discussões fragmentadas, o país chegou a um diagnóstico claro e amplamente consensual: o maior obstáculo à competitividade do gás não está apenas na produção da molécula, mas, sobretudo, na forma como sua infraestrutura de escoamento, processamento, transporte e distribuição está estruturada e remunerada. O custo dessa cadeia logística tem sido o principal fator de elevação do preço final ao consumidor, limitando o potencial de uso industrial e prejudicando a competitividade de diversos segmentos da economia.
Os avanços institucionais são inegáveis. A nova Lei do Gás (Lei nº 14.134/2021), os decretos regulamentadores subsequentes – com destaque para o Decreto nº 12.153/2024 – e os estudos técnicos conduzidos pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e pelo próprio Ministério de Minas e Energia (MME) construíram uma base normativa robusta. O diagnóstico está feito. O problema está mapeado. O passo seguinte exige foco na implementação.
O desafio central reside na superação de gargalos históricos relacionados ao acesso à infraestrutura de escoamento e processamento, segmentos que, por suas características técnicas e econômicas, configuram monopólios naturais. A regulação precisa avançar no sentido de estabelecer regras claras, objetivas e previsíveis para a remuneração desses ativos, de forma a conciliar a necessária atratividade ao investimento com a redução dos custos de acesso. A experiência internacional é rica em exemplos de como diferentes modelos de regulação econômica podem gerar resultados positivos tanto para investidores quanto para consumidores.
É nesse contexto que a atuação da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) adquire um papel estratégico. A definição de metodologias de cálculo tarifário, a publicização de bases de ativos e a garantia de condições isonômicas de acesso à infraestrutura são instrumentos regulatórios indispensáveis para corrigir assimetrias históricas. Além disso, a ampliação da transparência sobre os custos operacionais e de capital das infraestruturas permitirá maior previsibilidade e segurança jurídica para novos agentes interessados em acessar o mercado.
Do ponto de vista da oferta, os investimentos já anunciados – como o desenvolvimento da Rota 3, o Projeto Raia e o Sergipe Águas Profundas – demonstram o potencial de crescimento da produção nacional. Adicionalmente, a integração com países vizinhos, especialmente a Argentina, surge como alternativa estratégica para diversificação de fontes e redução de riscos de suprimento, desde que acompanhada de infraestrutura adequada para transporte e interconexão.
No entanto, o aumento da oferta, por si só, não será suficiente se não houver avanços simultâneos na regulação do acesso e na estruturação das tarifas. Não se trata apenas de expandir a produção, mas de garantir que o gás chegue ao consumidor final a preços competitivos e sustentáveis. Sem uma redução estrutural dos custos de transporte, escoamento e processamento, qualquer ganho na produção acabará neutralizado antes de chegar à indústria.
Do lado da demanda, o potencial é evidente. Segmentos intensivos em energia, como a indústria cerâmica, o setor vidreiro, a petroquímica e a siderurgia, já demonstraram disposição para aumentar o consumo, caso os preços se tornem mais alinhados aos patamares internacionais. Estudos setoriais indicam que a indústria paulista, por exemplo, poderia ampliar significativamente seu consumo se o gás fosse ofertado a preços mais competitivos.
Além disso, o próprio movimento de abertura de mercado tem mostrado resultados, especialmente no estado de São Paulo, com o crescimento do Ambiente Livre de gás. Entretanto, a velocidade dessa abertura ainda é limitada pelas restrições de infraestrutura e pela ausência de uma regulação econômica plenamente implementada para os serviços de escoamento e processamento.
A discussão também precisa incorporar a questão da reinjeção de gás nos campos de produção. O Brasil reinjeta volumes significativamente superiores à média mundial, o que reforça a necessidade de uma análise equilibrada entre as demandas da produção de petróleo e a expansão da oferta de gás ao mercado doméstico. Reduzir a reinjeção, dentro de parâmetros técnicos e operacionais adequados, pode ser um vetor adicional de crescimento da oferta.
Há, portanto, uma oportunidade real de transformação. Os fundamentos jurídicos e regulatórios estão postos. Os instrumentos de política pública foram desenhados. Os estudos técnicos foram realizados com a profundidade necessária. Agora, a prioridade deve ser a implementação coordenada dessas medidas.
O momento exige decisão política e ação regulatória. A indústria aguarda a concretização de uma estrutura que garanta previsibilidade, acesso não discriminatório e preços sustentáveis. A superação das distorções históricas que ainda caracterizam o mercado de gás natural no Brasil passa, inevitavelmente, pela aplicação efetiva dos instrumentos já disponíveis.
A agenda é conhecida: regulação econômica da infraestrutura essencial, fortalecimento da governança regulatória, incentivo à expansão da oferta e promoção da concorrência na comercialização da molécula. O caminho está traçado. O próximo passo é percorrê-lo com a agilidade e a determinação que o tema requer.
*Fernanda Tomé é advogada e doutoranda em Energia pela Universidade de São Paulo (USP)
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