A novela da oferta “hostil” de combinação de negócios feita pela Eneva à AES Tietê ganhou novos capítulos nos últimos dias e passou a ter contornos de uma disputa sobre as regras do mercado de capitais brasileiro.
No domingo (19) à noite, o conselho de administração da AES Tietê comunicou ao mercado a rejeição da proposta, e pediu à Eneva que modifique algumas condições para que os acionistas possam deliberar. Antes mesmo que os minoritários pudessem se posicionar contra a postura do conselho – uma vez que há o entendimento que a proposta não pode ser rejeitada pelo conselho, mas só pelos acionistas -, a americana AES, que controla a empresa, tornou pública uma carta que deixou os investidores estupefatos.
Mesmo sendo controladora da AES Tietê, com 61,57% das ações ordinárias (ON, com direito a voto), a americana AES pode ser vencida pelos minoritários preferencialistas (que somam parcela maior da companhia) numa AGE. Isso porque a companhia é listada no Nível 2 de governança da B3, o que dá direito de voto aos acionistas detentores de papéis preferenciais em casos como propostas de fusão e aquisição. Ou não. Esse é o entendimento geral no país há 20 anos, desde que o segmento de listagem foi criado, mas a AES pensa diferente.
“Após consultar especialistas em direito brasileiro, está claro para nós que a combinação de negócios proposta não pode ser implementada sem a aprovação da maioria dos titulares de ações ordinárias da companhia”, diz a carta da AES. Segundo a companhia, o direito de voto restrito não pode compelir que as ações com direito a voto acatem a vontade das ações sem direito ao voto.
Em resumo: a AES Corp, que tem a maior parte das ações votantes mas tem apenas 24,28% do total da companhia, não concorda que os preferencialistas podem votar em uma eventual assembleia sobre a oferta recebida. Não concordam com um dos pilares do Nível 2 de governança, cuja regra diz claramente: “as ações preferenciais emitidas deverão conferir direito de voto, no mínimo, nas seguintes matérias: transformação, incorporação, fusão ou cisão da companhia”.
A carta da AES é curta e não fornece explicações para esse entendimento, o que deve fazer parte da estratégia da americana para eventualmente encarar uma disputa com minoritários na Justiça. Não abrir o seu trunfo neste momento.
Em um trecho, a companhia deixa entender que há interpretação legal por trás da posição, ao dizer que “se a lei brasileira permitisse que os titulares de ações preferenciais aprovassem uma transação dessa magnitude sem o consentimento dos titulares de ações ordinárias, tal previsão representaria uma completa inversão na estrutura societária das companhias brasileiras”.
O que se comenta nos bastidores de mercado é que a Eneva descobriu o ponto fraco da estrutura societária da AES Tietê e apostou numa ação inédita até o momento no Brasil para incorporar o ativo.
Além do direito ao voto dos preferencialistas, a AES pode ter que enfrentar outro obstáculo nessa transação. Pelo acordo de acionistas, do qual fazem parte AES e BNDESPar, quem teria direito a veto numa proposta como essa seria o braço de participações do BNDES.
Os representantes do BNDES no conselho, assim como os membros independentes, também rejeitaram a proposta da Eneva, que foi vencida por unanimidade, o que aparentava colocar ambas as sócias no mesmo lado.
Na segunda-feira (20), porém, o BNDES se manifestou também de forma surpreendente. Se a AES pretende bater o pé e insistir que preferencialistas não devem votar esta matéria, o BNDES entende que a AES Tietê tem o dever fiduciário de convocar uma assembleia geral, dado que, nos termos da legislação aplicável, a matéria deve ser apreciada e deliberada pelos acionistas da companhia.
Se a Eneva não apresentar novos termos e condições à proposta original, a BNDESPar, como acionista minoritária relevante titular de 28,41% do seu capital social, pede que a administração da AES Tietê convoque uma assembleia geral de acionistas para deliberar sobre a transação. A cereja do bolo: “em tal assembleia, deve ser conferido aos acionistas preferencialistas o direito ao voto, na forma do estatuto social da companhia e do regulamento do Nível 2 da B3.”
Aqui, é importante não confundir as posturas de AES e AES Tietê. Enquanto a americana, na qualidade de sócia controladora, está defendendo seus direitos, a AES Tietê e seus administradores têm o dever fiduciário de defender os interesses dos acionistas. Todos eles.
O conselho de administração da Eneva ia se reunir hoje (21) para decidir quais os próximos passos e, tudo indica, o mercado aguarda esses passos ansiosamente.