
A Norte Energia, concessionária da hidrelétrica de Belo Monte, está em uma complexa batalha judicial para evitar o pagamento de uma conta retroativa de quase R$ 500 milhões em encargos de uso do sistema de transmissão (Eust). A cobrança pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) veio após um recente revés judicial da usina em uma ação na qual a empresa pedia para não arcar com a totalidade do custo de transmissão.
A concessionária da hidrelétrica do rio Xingu (PA) entrou na Justiça em 2022 alegando que a usina estaria deixando de gerar a totalidade de sua energia por falhas no planejamento e limites da rede de transmissão. No processo, a empresa pediu a adequação do Eust e do Montante de Uso do Sistema de Transmissão (Must), que representa a capacidade máxima de transmissão que um gerador contrata, proporcional à potência instalada do empreendimento.
O cerne da contestação de Belo Monte reside em suas características operacionais.
A hidrelétrica tem 11.233 MW de potência instalada, mas sua garantia física – a energia assegurada para entrega – é de apenas 4.571 megawatts médios. Isso ocorre porque a usina tem uma geração altamente dependente da vazão do rio Xingu, gerando muito na estação chuvosa (dezembro a abril) e sofrendo uma redução significativa nos meses de seca (maio a novembro), sem um reservatório para estocar água.
Para garantir o escoamento máximo nos meses de cheia, a usina precisa contratar um montante de uso da rede proporcional ao seu potencial máximo de geração, mesmo que não utilize essa capacidade nos meses de seca. Diante de restrições na operação por limites da rede de transmissão, a empresa entrou na Justiça para pagar o Eust apenas proporcionalmente à energia (MWh) efetivamente gerada e escoada.
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O pleito foi negado em primeira instância, mas, em julho de 2024, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) acatou um recurso da Norte Energia, determinando que o ONS revisasse o Cust, ajustando os encargos proporcionalmente à energia efetivamente escoada e injetada no Sistema Interligado Nacional (SIN).
Essa decisão, na prática, criou um “encargo de transmissão por megawatt-hora” para Belo Monte. A tarifa de transmissão dos geradores, o Eust, é paga pela disponibilidade da rede, independentemente de ela ser usada ou não. Isso porque, mesmo se a rede não for usada, a transmissora ainda precisa receber pela infraestrutura que mantém disponível.
Após essa decisão inicial, a Norte Energia passou a fazer pagamentos parciais, proporcionais à energia gerada. Essa prática, embora amparada judicialmente, gerou o que as transmissoras entenderam como inadimplência e levou a Abrate, associação das transmissoras de energia elétrica, a ingressar na ação como parte interessada, por temer o crescimento do rombo no faturamento.
O revés de Belo Monte e a cobrança retroativa
No início deste mês, a Norte Energia sofreu um revés. Em 2 de julho, a 11ª Turma do TRF1 acatou parcialmente um recurso do ONS, determinando que o Cust de Belo Monte preveja um Must proporcional ao cronograma de motorização da usina. Como todas as máquinas de Belo Monte entraram em operação em 2019, o ONS interpretou que a decisão lhe dava o direito de cobrar o encargo integralmente devido.
A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) entendeu que não haveria parcela de encargo a ser suspensa e liberou o ONS para cobrar a totalidade que deveria ter sido paga pela hidrelétrica. Essa determinação abrange os efeitos retroativos do período entre o primeiro e o segundo acórdão, resultando na cobrança dos quase R$ 500 milhões. A Aneel classificou a liminar original como uma “gravíssima lesão à ordem e à economia públicas”.
A Norte Energia, no entanto, discorda da interpretação. Para a empresa, o acórdão deixou claro que o acolhimento parcial dos recursos do operador não alterou as decisões anteriores em sua essência.
A dona da hidrelétrica entrou com recurso no dia 14 de julho pedindo esclarecimento ao TRF1, alegando entender que a decisão, na verdade, foi no sentido de que o Must deveria ser compatível com a garantia física das unidades geradoras (4.571 MW médios), e não com a potência instalada (11.233 MW).
Uma alternativa sugerida pela usina é que o encargo seja pago excluindo a energia vertida, ou seja, se houve vertimento turbinável (energia que a usina deixou de produzir), o encargo deveria ser reduzido na mesma proporção.
Riscos para o setor
Segundo especialistas ouvidos pela MegaWhat em condição de anonimato, a tese de Belo Monte é vista como perigosa para o setor, pois muitas hidrelétricas brasileiras também apresentam vertimento turbinável em certas condições operacionais, mas pagam o Eust proporcional ao Must contratado.
Por outro lado, a cobrança retroativa de Belo Monte pode agravar os desafios financeiros que a empresa já enfrenta, resultantes de problemas no projeto original e de atrasos.
No recurso, a empresa afirma que se a Aneel e o ONS entenderem que Belo Monte está inadimplente, poderá cobrar as parcelas em atraso, multa de 2% e mais juros efetivos de 12% ao ano, chegando ao valor de R$ 482,6 milhões devidos.
Há incertezas em relação a quem vai pagar o custo dessa disputa. Quando ingressou com petição no processo, a Abrate argumentou que a decisão original tinha potencial de lesar mais de mil usuários do sistema de transmissão, com possível efeito cascata sobre os consumidores de energia, já que a parcela não paga pela Norte Energia seria rateada entre outros agentes e consumidores, usuarios da rede.
Procurada, a Norte Energia não se manifestou sobre o caso. O ONS informou que “está envidando os melhores esforços no processo em questão para preservar o modelo setorial e o equilíbrio do segmento de transmissão”.