Por Alice Khouri e Maria João Rolim
A pandemia ocasionada pelo vírus covid-19 impacta, ainda, todos os setores econômicos e produtivos. 2020 foi um ano atípico que, no caso do setor elétrico, a exemplo de outros setores regulados, exigiu por parte das instituições a tomada de medidas não convencionais, tais como a Conta-Covid[1], dentre outras. Findo 2020, em termos regulatórios espera-se um 2021 igualmente desafiador, focado não mais primordialmente nos efeitos imediatos da pandemia, mas sim nos impactos mediatos que, a nosso ver, tendem a ser ainda mais complexos e profundos, posto que estruturais.
No tocante especificamente ao setor elétrico brasileiro, experimentamos um “efeito dominó” bastante drástico: com a redução ou paralisação das atividades econômicas, os consumidores livres e especiais – grandes indústrias, segmentos de infraestrutura etc. – consequentemente a demanda de energia é reduzida, o que é acompanhado por uma retração na geração de forma mediata e guarda, sobretudo, um problema mais grave: deixa prejudicada a manutenção e expansão da estrutura de transmissão e distribuição, na parte denominada “fio”, que continua a precisar de ser custeada independentemente do efetivo consumo. Ainda, apesar da retração econômica, planejar a expansão do sistema como um todo segue sendo um desafio e objetivo a perquirir, desafio este de acirrada dificuldade dada a incerteza quanto ao momento, nível e forma da esperada e desejada recuperação da atividade econômica.
O efeito sistêmico sofrido pelo setor é próprio da interligação da cadeia produtiva, e necessariamente demanda políticas e intervenções que privilegiem coordenação estrutural do setor elétrico. Nesse contexto emerge, ainda mais latente, o papel fundamental do direito e da Regulação para 2021 enquanto responsáveis pelo planejamento e tomada de decisões no mercado: será necessário, sem dúvidas, a junção de esforços direcionados de todos agentes (institucionais e econômicos) em direção à mitigação dos prejuízos, construção de soluções e planejamento da retomada econômica.
Referida dinâmica passa, necessariamente, pelo enfrentamento de alguns desafios, a saber: completa ressignificação do padrão de relacionamento entre Estado e sociedade, o fim da dicotomia entre interesse público e privado, repensar a tradicional regulação comando e controle e investir em um modelo de maior cooperação institucional.
A agenda desafiadora atrai a necessidade de estudo e, neste sentido, tornamos nosso olhar para nossa veia acadêmica em busca de respostas conceituais que nos permitam enfrentar as questões práticas que se apresentam. Pensando assim, nos vem de imediato as lições de Julia Black, professora da London School of Economics (LSE). A autora dedicou parte significativa de sua investigação acadêmica a compreender o significado e objetivo da atividade regulatória, construindo, por decorrência, a concepção de “decentred regulation.” (BLACK, 2001), um conceito que concebe a regulação não mais como uma atividade a ser emanada monopolisticamente somente pelos entes estatais (leia-se, agências reguladoras e entes governamentais) mas sim como uma atividade exercida em conjunto pelo mercado, instituições e sociedade. Em sua perspectiva, J. Black enfatiza a impossibilidade e, mais ainda, insuficiência, de uma regulação baseada na simplista relação entre regulador e regulado e tendo como principal instrumento ferramentas de Comando e Controle.
O diagnóstico delineado por J. Black nos convida a repensar a regulação como uma atividade muito mais que meramente institucional ou centralizada na figura do regulador ou autoridades reguladoras[2], mas sim um produto da interação entre os diversos players do mercado, as instituições incluindo a autoridade reguladora e, ainda, a sociedade[3]. Não há, de forma alguma, anulação ou esvaziamento do papel do Regulador. Ao contrário, a regulação descentralizada reforça o papel da regulação com expertise institucional, mas reconhece que sozinha a agência não consegue regular o mercado de forma totalmente eficiente, haja vista as informações que só o mercado detém sobre si mesmo, as mudanças incessantes que ocorrem nos interesses dos envolvidos ou, ainda, a legitimidade democrática que só a participação social confere aos procedimentos.
Uma vez conhecida a crise, reconhecidos os seus efeitos e já em discussões e estudos as inúmeras controvérsias para mitigação dos prejuízos, um aspecto não pode ser esquecido: a ressignificação do papel da Regulação para o enfrentamento eficiente de um 2021 que será desafiador e terá como principal objetivo ainda mitigar os efeitos nefastos da crise, mas principalmente o de recriar as condições para recuperação da atividade econômica, o que exige: priorizar a garantia de segurança jurídico regulatória, levar a cabo um processo de transformação energética que não nos parece ser transitório mas natural evolução a perquirir, o que, pragmaticamente, exige implementar a tão debatida Modernização do Setor mantendo o compromisso com a sustentabilidade que tem como base o relevante papel de propiciar as condições necessárias para atração de investimento.
Assim, para além de um olhar imediato e, arriscaríamos dizer, preocupado, um olhar mais longínquo nos indica a necessidade de considerar também as oportunidades que surgem deste momento crítico. Notadamente, a possibilidade de se reconstruir um modelo energético (e também um modo de viver e consumir) mais voltado para a sustentabilidade do ambiente[4] em que vivemos. Mais do que nunca, tanto o Direito quanto a Regulação serão cruciais para se capturar de forma eficiente algo que otimistamente ousamos chamar de “oportunidade histórica” para que não continue tudo na mesma, ou seja, para que não queiramos ansiosamente retomar o passado (que indubitavelmente teve seu papel), mas almejamos construir um futuro mais apropriado ao novo momento. Esta última reflexão, contudo, carece de estudo e reflexão mais detalhada que surpassa o espaço reservado a esta matéria, mas instiga a pensarmos na próxima: o que seria e o que queremos que seja o chamado “novo normal” no âmbito do setor energético.
Maria João Rolim é sócia do Rolim, Viotti, Goulart Cardoso Advogados. Doutora em Direito de Energia pelo Centre for Energy, Petroleum and Mineral Law and Policy (CEPMLP) da Universidade de Dundee/Escócia, LLM pela London School of Economics (LSE) – (Energy Markets). Mestre em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduada em Direito e Economia.
Alice Khouri é advogada do Rolim, Viotti, Goulart Cardoso Advogados. Doutoranda em Direito e Economia na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL). Mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).
[1] A Conta-Covid foi regulamentada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) em 23/06/2020 e é uma operação de mercado, sem recursos do Tesouro Nacional, e foi estruturada sob a forma de empréstimo sindicalizado de bancos, lastreada por ativos tarifários. Foi uma das medidas emergenciais adotadas contra os impactos econômicos da pandemia do coronavírus. O BNDES coordenou, junto a outros bancos públicos, o aporte de recursos na Conta-Covid, financiamento emergencial destinado ao setor elétrico. A operação foi organizada para evitar reajustes maiores nas tarifas de energia elétrica para o consumidor final, que seriam originados por efeitos previstos no próximo processo tarifário ordinário das distribuidoras. https://www.bndes.gov.br
[2] Referida análise de minha autoria foi desenvolvida com base conceitual nas lições de Julia Black (sobre a regulação descentralizada e a procedimentalização da regulação) para estudo desenvolvido para a disciplina de Regulação. Alguns parágrafos foram aproveitados dado a pertinência temática e esse disclaimer os identifica a fim de afastar qualquer acusação de autoplágio.
[3] Nas palavras da Professora da LSE: “The decentred understanding of regulation is based on slightly different diagnoses of regulatory failure, diagnoses which are based on, and give rise to, a changed understanding of the nature of society, of government, and of the relationship between them. The first aspect is complexity. Complexity refers both to causal complexity, and to the complexity of interactions between actors in society (or systems, if one signs up to systems theory). (…) The second aspect is the fragmentation, and construction, of knowledge. This is sometimes referred to simply as the information asymmetry between regulator and regulated: that government cannot know as much about industry as industry does about itself. (…)The third aspect is fragmentation of the exercise of power and control. This is the recognition that government does not have a monopoly on the exercise of power and control, rather that is fragmented between social actors and between actors and the state.6 (…) The fragmentation of the exercise of power and control entails the fourth aspect of the decentred understanding of regulation: a recognition of the autonomy of social actors. Autonomy is not used in the sense of freedom from interference by government, but in the sense that actors will continue to develop or act in their own way in the absence of intervention. (…)The fifth aspect of the decentred understanding of regulation is the existence and complexity of interactions and interdependencies between social actors, and between social actors and government in the process of regulation. (…)The claim that governance and regulation are the product of interactions and interdependencies leads into a sixth aspect of the decentred understanding of regulation. That is the collapse of the public/private distinction in socio-political terms, and a rethinking of the role of formal authority in governance and regulation. In the decentred understanding of regulation, regulation happens in the absence of formal legal sanction-it is the product of interactions, not of the exercise of the formal, constitutionally recognized authority of government.”[5] (BLACK, 2001, p.106-110)
[4] Quanto ao assunto, recomendamos a leitura do recém publicado artigo no The Economist (https://www.economist.com/briefing/2020/05/21/can-covid-help-flatten-the-climate-curve) que aborda a importância, mais do que nunca, do investimento em energias renováveis e a justificativa econômica para tanto, que se alia fortemente à justificativa ambiental no sentido de sustentabilidade. Destacamos, neste contexto, o seguinte trecho: “The cost of renewables is dipping below that of new fossil-fuel plants in much of the world. After years of development, electric vehicles are at last poised for the mass market. In such circumstances covid-19 may spur decisions—by individuals, firms, investors and governments—that hasten fossil fuels’ decline. So far, renewables have had a pretty good pandemic, despite some disruptions to supply chains. With no fuel costs and the preferential access to electricity grids granted by some governments, renewables demand jumped 1.5% in the first quarter, even as demand for all other forms of energy sank. America’s Energy Information Administration expects renewables to surpass coal’s share of power generation in America for the first time this year.”
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