Por: José Maurício Carvalho e Paulo Tarso
Tradicionalmente o setor elétrico se caracteriza por ser uma indústria de capital intensivo, e por conta disso, até pouco tempo atrás, apenas empresas de grande porte eram capazes de realizar investimentos, ter acesso aos recursos e participar da expansão do setor.
Nas primeiras duas décadas do novo milênio a expansão da geração de energia na matriz elétrica brasileira foi marcada majoritariamente pela realização de grandes leilões centralizados com o objetivo de atender a carga incremental declarada pelas distribuidoras de energia, ou seja, voltados para o Ambiente de Contratação Regulado (ACR).
Esse modelo foi importante e necessário para assegurar a expansão do sistema nesse período. Nesses certames as distribuidoras avaliam a projeção da demanda da sua área de concessão para os próximos anos, informam essa necessidade para os órgãos governamentais que organizam o leilão de compra desta energia oriunda de novos projetos.
Esses leilões são os mecanismos que viabilizam financiamentos mais atrativos para os grandes empreendedores, uma vez que proporcionam a venda da totalidade da energia por um período de 15 até 30 anos, por meio dos PPAs (Power Purchase Agreement).
Com a energia vendida no longuíssimo prazo os PPAs funcionam como uma garantia sólida para os financiamentos necessários aos empreendimentos, e assim a equação se fecha: grandes empreendedores + comprador regulado + contrato de longo prazo = financiamento atrativo garantido.
Apesar dessa lógica funcionar para o empreendedor em um modelo regulado, em que o consumidor compulsoriamente vai arcar com todo o custo via tarifa, ficou evidente nos últimos anos, quando observamos a sobrecontratação das distribuidoras, que a contratação de longo prazo nem sempre é a mais eficiente.
Outro ponto a se pensar é se existe a real necessidade de PPAs de longo prazo para se viabilizar um financiamento atrativo. Tem um exemplo ilustrativo que gostamos muito de usar dentro das discussões na Vivaz Energia: o financiamento de um navio de cruzeiro.
Um navio de cruzeiro demanda centenas de milhões de reais para ser construído, além de um longo tempo de construção, assim como uma usina de geração de energia. Para viabilizar a construção deste navio, a empresa costuma financiar de parte do orçamento da construção. A pergunta que vem na sequência é: será que esta empresa, para conseguir tal financiamento, é obrigada a apresentar um contrato de venda de todas as cabines deste navio, durante toda sua vida útil? Certamente não.
Quando fazemos este paralelo, fica até estranho, visto que não faria qualquer sentido alguém precisar fazer a venda por todo este prazo e de 100% das cabines. Não se sabe se todos os dias das temporadas de verão serão ensolarados ou se estaremos com a economia em alta, ou até, quem poderia imaginar, se passaremos por uma pandemia. Mas, com certeza, existe um estudo por parte dos financiadores que possibilita entender o risco deste mercado e que viabiliza realizar a operação de empréstimo.
Partindo deste princípio, porque será que para financiar projetos de geração de energia elétrica, um ativo de consumo fundamental para todos, item estratégico para o desenvolvimento de qualquer país, e com projeções de crescimento de demanda constantes é exigido que para cada KWh a ser construído se tenha um contrato de venda de longo prazo?
O Ambiente de Contratação Livre (ACL) foi se desenvolvendo e amadurecendo sendo atualmente responsável por atender aproximadamente 8.700 consumidores que representam em torno de 32% do consumo de energia brasileiro. Grandes empresas comercializadoras e gestoras apareceram, assumindo riscos, gerenciando portfolio e fazendo essa ligação entre o gerador já construído, porém descontratado, e o consumidor final.
Nos últimos anos, o ACL vem participando de maneira ativa da expansão do sistema. Alguns empreendimentos de geração em operação e muitos outros em construção foram viabilizados por este ambiente, porém, ainda existe a obrigação, mesmo que velada, do empreendedor precisar achar um consumidor que saiba projetar a sua demanda com antecedência de pelo menos dez anos, e que esteja interessado em realizar a contratação de energia de longo prazo, para tal contrato servir de garantia para a obtenção de um financiamento.
Em um mercado em que a produção industrial é globalizada, exigir a contratação de longo prazo para ser mais competitivo, como ocorre no Brasil, mostra o tamanho do gap que temos entre a necessidade do presente e a otimização de recursos futuros. Sob essa ótica fica ainda mais evidente a importância do papel da comercializadora, que pode absorver estas quantidades de energia e pulverizá-las no mercado de forma gradual, conforme a necessidade do consumidor, assumindo a responsabilidade de triagem, análise e controle de crédito, e mitigando o risco do gerador ao longo de sua operação.
Hoje temos muitas empresas comercializadoras no mercado, com equipes especializadas e altamente qualificadas, que constantemente se mostram capazes de atender as necessidades dos clientes de forma customizada, contribuir para a redução efetiva do custo da energia elétrica para o consumidor final, além de trazer previsibilidade dos preços, agregando, portanto, valor à cadeia produtiva. Essa capacidade de moldar os produtos conforme a demanda do mercado e a habilidade de gestão de portfolio precisa ser entendida pelo financiador como uma expertise com a qual ele pode contar, por ser tão ou mais sólida que o contrato de longo prazo com o consumidor que hoje atende o quesito de garantia.
A expansão do mercado livre tende a dobrar a alocação do consumo de energia no ACL nos próximos anos, e com isso será inevitável a expansão da geração impulsionada por esses agentes que exigirão um mercado cada vez mais competitivo, em que a financiabilidade se dará pela gestão de riscos e oportunidades, e não por um contrato de longo prazo.
Os novos consumidores do mercado livre serão naturalmente consumidores de carga menor, pequenas indústrias, comércios e residências. Não enxergamos esses agentes com apetite de se fidelizar a um contrato de fornecimento de energia por 10 ou 15 anos. Traçando um paralelo com o mercado de telefonia, seria como o consumidor ter que se comprometer hoje com um plano de celular e internet por dez anos. Isso não nos parece viável e nem o mais econômico para o cliente nem para o dono da usina. Mais uma vez o papel das comercializadoras se torna relevante originando clientes de vários portes e perfis, criando produtos de longo, médio e curto prazo.
Acreditamos que a experiência no mercado livre adquirida pelos consumidores e comercializadores nos últimos 20 anos são as ferramentas necessárias para construção de um grande projeto em parceria com o mercado financeiro, com a capacidade de oferecer melhores retornos do que uma contratação de longo prazo e ainda assim mitigar os riscos durante o período de financiamento e geração de energia.
Com vistas a esse futuro, está chegando o momento de embarcar neste cruzeiro para não ficar à deriva!
José Maurício Carvalho e Paulo Tarso são, respectivamente, presidente e diretor Comercial da Vivaz.
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