O diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) Efrain Cruz concedeu uma decisão monocrática determinando o recalculo das indenizações bilionárias devidas às transmissoras que renovaram os contratos nos termos da Medida Provisória (MP) 579, em 2012. As transmissoras já apresentaram recurso contra a decisão, alegando que ela causaria “enorme transtorno e instabilidade regulatória ao setor.”
Segundo fontes, a decisão, que tem a data de 30 de junho, pode ser encarada como descumprimento de uma liminar vigente, concedida pela Justiça do Distrito Federal em 20 de junho, que retirou o processo referente ao caso da pauta da reunião ordinária da Aneel daquela semana até que as transmissoras de energia pudessem ser ouvidas.
Após a decisão, que surpreendeu o mercado por ser a primeira monocrática de um diretor, as transmissoras afetadas entraram com recurso administrativo na própria Aneel, pedindo o efeito suspensivo da cautelar concedida pelo diretor. Os pedidos devem ser apreciados pela diretora-geral substituta, Camila Bomfim, mas o processo também está na pauta da próxima reunião da diretoria, de 5 de julho.
Suposto erro nas indenizações
O imbróglio se refere a um suposto erro da Aneel no cálculo das atualizações financeiras dos montantes devidos, com “excesso indevido de capitalização de juros sobre o fluxo de caixa da parcela financeira” dos valores. Em 2 de junho, foi publicada uma nota técnica da Superintendência de Gestão Tarifária (SGT) da Aneel recomendando a alteração do tratamento dos componentes financeiros dessas indenizações, conhecidas no setor como RBSE (sigla para Rede Básica Sistema Existente). O documento estimava que o saldo devedor, com data-base de julho de 2020, iria cair de R$ 33,92 bilhões para R$ 31,52 bilhões.
A Procuradoria Geral junto à Aneel, contudo, avaliou em parecer que, como não houve erro material, e sim uma escolha metodológica, esta não pode ser anulada sem fundamento, por não ser ilegal. Como não foram apontadas ilegalidades, os pedidos formulados por geradores, que motivaram os estudos da área técnica, não deveriam ser reconhecidos.
O prazo de prescrição da decisão da agência que formulou a metodologia desse cálculo terminava no dia 30 de junho. Foi com esse argumento que o diretor Efrain Cruz concedeu a decisão monocrática, suspendendo a resolução de 2017 que calculou os valores e determinando a correção pela SGT dos cálculos relativos à parcela financeira considerada controversa.
Segundo ele, o recálculo do valor devido da parcela só vai ter efeito a partir do ciclo tarifário de transmissão 2023/2024, que começa em julho do próximo ano. Assim, será possível corrigir a conta que começou a ser paga em 2020, com acertos de contas nos ciclos a vencer.
Herança da MP 579
Depois que a MP 579 foi convertida na Lei 12.783/2013, as transmissoras de energia iniciaram um movimento para pleitear as indenizações devidas aos ativos anteriores a maio de 2000 que ainda não tinham sido amortizados, o RBSE. As condições de pagamento foram definidas em abril de 2016, por meio da portaria 120 do Ministério de Minas e Energia, e os pagamentos começaram no ciclo tarifário seguinte.
As principais afetadas pela redução nos recebíveis seriam Eletrobras e Cteep, mas também fazem jus ao RBSE as empresas Copel, Cemig, CEEE-T e Celg-T – todas elas tiveram as concessões renovadas pela MP 579.
Na época, ficou decidido o pagamento da indenização, mais uma atualização financeira dos montantes devidos, que foi questionada por grandes consumidores na Justiça e resultou numa liminar suspendendo parte do pagamento.
Em 2019, essa liminar caiu, e a Aneel voltou a contabilizar o pagamento de todos os recursos na revisão tarifária das transmissoras de 2020. Esses recursos não pagos seriam atualizados pelo IPCA, mas as transmissoras defenderam que deveria ser pelo custo de capital, o ke, ao passo em que os geradores e consumidores defendiam o uso do Wacc, sigla para o custo médio ponderado de capital.
Em 2021, a Associação Brasileira dos Investidores em Autoprodução de Energia (Abiape), a Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace), e as concessionárias de Jirau, a Energia Sustentável do Brasil, e de Belo Monte, a Norte Energia, encontraram inconsistências nos números da RBSE e entraram com os questionamentos pedindo a atualização pelo Wacc.
Na nota técnica, a SGT separa os fluxos de pagamento do que chama de parcelas não controversa (pagas a partir de julho de 2017) e controversa (pagas a partir de julho de 2020, após a queda da liminar), e atualiza pelo ke apenas a parcela controversa.
Além disso, o grupo que identificou as “inconsistências matemáticas” alega que houve um erro de aplicação da metodologia de cálculo em 2017, que aumenta os juros no fluxo de pagamentos. As transmissoras dizem que se trata de uma escolha metodológica do regulador.
No caso da metodologia de 2017, o prazo de prescrição da decisão da agência terminaria em junho. A liminar do dia 20, ao tirar o assunto da pauta da Aneel até que os transmissores fossem ouvidos, poderia inviabilizar os efeitos de uma discussão sobre o tema.
Decisão monocrática x Procuradoria
Na decisão monocrática, o diretor Efrain Cruz não citou a liminar em questão, e destacou que a Abrate, associação que representa as transmissoras de energia, requereu a retirada de pauta dos processos em questão, alegando a necessidade de prazo para ampla defesa e contraditório.
Na sua decisão, ficou determinado que a SGT disponibilize o teor dessa decisão e os ajustes dos cálculos da parcela financeira controversa da RBSE, para que os agentes afetados possam exercer o direito ao contraditório e ampla defesa. Depois de 10 dias de manifestação dos interessados, o processo será instruído para análise de mérito da diretoria da Aneel.
Enquanto o diretor alegou que houve vício das decisões anteriores da agência, motivando sua suspensão, a Procuradoria Federal junto à Aneel concedeu parecer afirmando o oposto: de que a metodologia questionada foi definida pela discricionariedade técnica da Aneel. Assim, mesmo que hoje se avalie que outra técnica teria sido mais adequada, não seria possível estabelecer como ilegal aquela que foi escolhida.
“O passar do tempo facilita a crítica sobre escolhas regulatórias passadas. Porém, a crítica não torna possível a invalidação de escolhas regulatórias que cumpriram os seus limites jurídicos. Ora, regular é fazer escolhas”, diz o parecer, assinado pelos procuradores federais Cid Arruda Aragão e Marcelo Escalante, com o aval de Luiz Eduardo Diniz Araújo, procurador-chefe.
O documento continua afirmando que, na ocasião, a Aneel escolheu, “de forma legítima e motivada”, o critério para o cálculo dos pagamentos, em um processo que foi submetido a audiência pública, quando credores e devedores puderam apresentar informações e subsídios para edição da norma.
“A Aneel não pode agora desprezar o resultado da audiência pública para simplesmente eleger outro critério que entender mais adequado, sem apontar qualquer vício capaz de invalidar a referida escolha metodológica”, diz o parecer da procuradoria.
Depois da emissão desse parecer, o diretor Efrain Cruz encaminhou nova correspondência à procuradoria, afirmando que, no seu entendimento, o caso envolve um “flagrante erro material, que poderá ocasionar onerosidade excessiva”. No documento, ele pediu os esforços da procuradoria para realizar despacho urgente com a Justiça para que o assunto pudesse voltar à pauta da Aneel antes do prazo acabar.
No dia 27 de junho, a procuradora federal Karine Lyra Corrêa impetrou um agravo de instrumento contra a decisão liminar que barrava o assunto na pauta da diretoria. A Justiça ainda não acatou o pleito, mas o processo foi colocado na pauta da próxima reunião da Aneel, do dia 5 de julho.
No recurso apresentado nesta sexta-feira na Aneel, os advogados da Abrate apontaram que a decisão em questão, se mantida, vai causar “enorme transtorno e instabilidade regulatória ao setor”, prejudicando a estabilidade tida como “fundamental para a formulação das decisoes dos agentes regulados e para o desenvolvimento econômico setorial, inclusive no tocante aos usuários do sistema elétrico brasileiro.”
A Abrate argumentou ainda que o impacto não seria sentido pelas transmissoras apenas em julho de 2024, mas sim “desastroso e imediato” nas atividades das empresas, devido aos problemas causados no planejamento futuro da sua geração de caixa.
(Atualizado em 03/07/2022, às 12h, para inclusão de manifestação da procuradoria e informações sobre o recurso dos transmissores)