Por: Bruno Figueiredo Caceres*
Ao redor do globo, os setores elétricos apresentam diferentes características e enfrentem desafios distintos. Contudo, a expectativa de aumento do consumo e da geração de energia elétrica no mundo e a transição energética debatida no contexto de acordos internacionais voltados ao combate de mudanças climáticas trazem problemas semelhantes aos reguladores independentemente de nacionalidade.
Neste cenário, o estudo comparado entre a regulação do setor elétrico no Brasil e na França pode agregar à discussão, sobretudo quanto à governança dos respectivos reguladores. Isso porque, sendo país de tradição jurídica administrativa e ostentando código que regulamenta as relações no setor energético (o Code de l’énergie), estudar o desenho do regulador francês permite traçar paralelos e investigar se lições podem ser aprendidas para o aprimoramento da governança do regulador brasileiro.
Na França, há a Commission de régulation de l’énergie (CRE), com natureza de autoridade administrativa independente (AAI) e criada em um contexto de abertura do mercado de energia dos países europeus à concorrência, bem como de quebra de monopólios nacionais. O surgimento da CRE ocorreu em meio à transposição de Diretivas do direito comunitário europeu ao direito nacional francês, com a positivação de novos princípios norteadores para o setor nos países do bloco: a liberdade de escolha entre fornecedores de eletricidade e de gás e de estabelecimento de tais agentes, além do livre acesso às redes de distribuição e transmissão. Foi a Lei nº 2000-108, relativa à modernização e ao desenvolvimento do serviço público de eletricidade no país, que instituiu o regulador francês (Lei da CRE).
A CRE é composta por dois órgãos independentes: o Colégio, com 5 membros, que também conta com uma Secretaria Geral e com uma Direção Geral de Serviços, divididas em 6 diretorias cada; e o Comitê de Resolução de Disputas e Aplicação de Sanções (CoRDiS, em francês), com 4 membros. O CoRDiS é responsável pela resolução, tanto técnica como financeira, de litígios entre “gestores e utilizadores de redes públicas”, com vistas à garantia de acesso “transparente e não discriminatório”, a fim de assegurar a abertura do mercado à concorrência, por meio da adjudicação e da aplicação de sanções. O Colégio, por sua vez, exerce os demais poderes atribuídos à CRE – por exemplo, o poder regulamentar, limitado por um quadro positivado de leis parlamentares e decretos.
Comparando os reguladores, destaque-se a ausência de personalidade jurídica da CRE, decorrente de sua natureza de AAI. Ainda que pautada pela tecnicidade e especificidade, até que ponto a regulação desempenhada por regulador sem esse atributo própria estaria imune à influência externa do Governo? Tal aspecto ganha contornos ao se considerar a previsão legislativa francesa sobre a presença de um Comissário do Governo, nomeado pelo Ministro responsável pela energia, encarregado da transmissão das análises de política energética entre Governo e regulador, retirando-se quando da votação nas deliberações.
Sobre a natureza dos órgãos, o reconhecimento da natureza jurídica de AAI da CRE se deu em decisão do Conselho de Estado, na forma de precedente firmado anos após à edição da Lei da CRE, silente nesse ponto. Na legislação, seu reconhecimento como AAI ocorreu somente em 2017, na Lei nº 2017-55. Por outro lado, no Brasil, a Lei da ANEEL conferiu explicitamente à agência a natureza de autarquia especial.
Quanto à composição da CRE, não há sabatina e as indicações para a o Colégio tampouco são exclusivas do Presidente da República (nomeia 2 membros e o presidente para mandatos de 6 anos). O Poder Executivo não é o único órgão a indicar os membros do Colégio, mas também o faz o Poder Legislativo, na forma dos Presidentes da Assembleia Nacional e do Senado (cada um designa os outros 2 membros com mandatos de 4 anos). O desenho francês de nomeação por diferentes poderes apresenta uma dinâmica de equilíbrio distinta da brasileira, que poderia até mesmo garantir mais independência por meio da formação de um órgão mais diverso. O CoRDiS, por sua vez, soma 4 membros de órgãos jurisdicionais franceses (2 Conselheiros do Conselho de Estado, designados pelo Vice-Presidente do órgão, e 2 assessores do Tribunal de Cassação, nomeados pelo Primeiro Presidente do referido Tribunal, sendo que o presidente é apontado por decreto).
Cabe ressaltar a segregação dos poderes adjudicatórios e sancionatórios do Colégio por meio da criação do CoRDiS, órgão separado incumbido da realização de tais tarefas, o que não ocorre na ANEEL. Qual teria sido a lógica por trás dessa opção política?
Ao final, percebe-se que ANEEL e CRE, apesar das especificidades jurídico-constitucionais de cada país e dos contextos de surgimento, ilustram que o desenho de agências reguladoras não é fixo ou padronizado. A implementação desse modelo é um projeto em constante aperfeiçoamento, sobretudo da perspectiva de governança pública e dos interesses e visões distintos sobre o papel das instituições administrativas e do equilíbrio no funcionamento dos Poderes estatais. Por isso, o modelo de agências reguladoras não deixará de ser alvo de disputas políticas nos países que o adotam e continuará a sofrer transformações de seus contornos institucionais ao longo dos tempos.
*Bruno Figueiredo Caceres é advogado no Edelstein Advogados
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