Por Rodrigo Novaes
Em uma sessão extraordinária realizada no dia 16/09/20, o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE) autorizou o acionamento de geração adicional àquela definida pela ordem de mérito econômico, que resulta dos modelos computacionais. Esta produção por garantia energética é feita por centrais termoelétricas e importação de energia da Argentina e do Uruguai sem substituição.
Considerando (i) que o despacho econômico no Brasil representa a incerteza hidrológica, utilizando critérios de aversão ao risco frente a esta incerteza; e (ii) que a programação diária, no curtíssimo-prazo, é auxiliada por um modelo que representa diversas características do sistema e da operação real – maior resolução temporal, unit commitment, representação linear por partes de limites dinâmicos, etc. – algumas perguntas surgem: por que houve necessidade de acionamento termoelétrico adicional? Seriam o critério e os parâmetros atuais de aversão ao risco insuficientes? Há características operativas relevantes ainda não representadas com detalhe suficiente? Ou seria a situação atual um resultado conjunto destes fatores?
O contexto energético
Ao longo de 2020 a situação energética não foi severa: a carga acumulada até outubro foi cerca de 2% inferior à observada durante o mesmo período de 2019, sendo mais de 6% inferior às projeções do início do ano – PEN 2020-24. Houve ainda a entrada, ao longo do ano, de mais de 3,5 GW de capacidade instalada. Até julho a ENA acumulada no SIN era cerca de 90% da média histórica, ou seja, longe de ser um dos piores anos. Por conta da baixa demanda, a elevação do armazenamento foi expressiva, atingindo 60% da capacidade máxima ao fim do primeiro semestre – valor superior ao observado nos últimos cinco anos na mesma época.
A partir de agosto, no entanto, o balanço energético foi mais exigente: a ENA observada no SIN entre agosto e outubro está entre as quatro piores do histórico, sendo o mês de outubro o mais severo já visto. A carga mostrou sinais de retomada, superando o mesmo período de 2019 em 1.7 GW médios. O resultado foi o esvaziamento de mais de 30 p.p. da energia armazenada do SIN desde o início de julho, o mais expressivo desde 2012, culminando com a decisão do CMSE.
Desde a deliberação vimos o balanço energético ser alterado: no acumulado do mês até 17 de novembro [1] a geração termoelétrica praticada superou os 14 GW médios (23% da carga), sendo cerca de 2,6 GW médios acionados por garantia energética, além de 1,3 GW médios (3% da carga) recebidos por importação – com custos variáveis de até 1000 R$/MWh. Para fins de comparação, até o dia 17 de outubro, imediatamente antes à deliberação, a parcela termoelétrica correspondia à 18% da carga e não havia importação.
O modelo de curtíssimo prazo não sinalizou
Os estudos do CMSE que respaldam esta decisão não são públicos. No entanto, chama a atenção que antes da decisão, durante o período seco do SIN, nem mesmo o modelo DESSEM sinalizava a necessidade do despacho termoelétrico adicional: na semana entre os dias 10 e 16 de outubro o modelo ordenava em torno de 9,5 GW médios de geração termoelétrica, resultando em custos marginais da ordem de 280 R$/MWh ao longo da semana [2].
Dentre as possíveis razões para tanto, duas se destacam:
- Existem características relevantes da operação ainda não representadas no modelo, o que o faz enxergar de modo otimista a realidade operativa em seu horizonte. Um exemplo disto, porém, não diretamente relacionado ao assunto, é a diferença entre os valores ordenados pelo modelo contra os praticados para a geração das hidroelétricas da Bacia do Rio São Francisco [3].
- Sua função de custo futuro (FCF) – herança do modelo DECOMP – não ofereceu os sinais necessários para o modelo acionar o montante de termoelétricas desejável, tornando as hidroelétricas prioritárias no acionamento por mérito econômico. Isto fica claro ao observar os preços de curto-prazo que, até a primeira semana de novembro, não ultrapassaram os 400 R$/MWh.
Chegamos na aversão ao risco
Adicionalmente, chamo a atenção para a aversão ao risco, cuja ideia geral é levar a decisões mais conservadoras em relação à incerteza hidrológica. Atualmente, a aversão é representada: (i) através do CVaR que, em linhas gerais, atribui maiores probabilidades para um conjunto de cenários mais severos utilizados nas simulações dos modelos NEWAVE e DECOMP; (ii) pela adoção das curvas de volume mínimo operativo no modelo NEWAVE, penalizando cenários simulados onde a energia armazenada viola determinados níveis de segurança; e (iii) pelo próprio custo de déficit, nos três modelos computacionais.
Especificamente no modelo DESSEM não há, além do custo de déficit, um critério de aversão ao risco explícito: a simulação é determinística, de modo que não é possível aplicar o CVaR; o horizonte utilizado é de uma semana, de modo que não é possível enxergar a trajetória de armazenamento dos grandes reservatórios e utilizar uma curva de armazenamento mínimo.
Possuímos, portanto, três modelos computacionais com diferentes representações do sistema, diferentes horizontes e diferentes aversões ao risco. Apesar das diferentes representações, idealmente a FCF seria capaz de realizar a comunicação entre os diferentes modelos, trazendo implícitos os riscos percebidos no longo prazo. Caso o sinal enviado através da FCF pelos modelos NEWAVE e DECOMP não seja suficiente, provavelmente a ordem de mérito no curtíssimo prazo, construída pelo DESSEM, não incluirá o montante termoelétrico desejável.
Resumindo
É desejável que toda a informação relevante para a operação do sistema esteja internalizada na sistemática de despacho econômico, de modo que as decisões de despacho e os preços reflitam a realidade operativa. Em geral, tudo aquilo que não é internalizado no despacho econômico é tratado posteriormente: se não é refletido nos preços, em maior ou menor grau, resulta em encargos; se capacidade suficiente não é acionada por mérito econômico, termina por ser acionada em caráter extraordinário.
Neste contexto, a utilização de metodologias de aversão ao risco são uma tentativa de internalizar, no despacho econômico, um critério operativo que do contrário não seria considerado. Espera-se com isso obter um “aviso prévio”, com certa antecedência, a respeito da necessidade de utilizar recursos energéticos mais caros antes de a conjuntura energética ser realmente severa, minimizando a necessidade de acionamentos extraordinários. Por outro lado, a incorporação de detalhes da operação real busca aproximar as decisões (e preços) obtidos do despacho econômico à realidade operativa, garantido que as decisões operativas ordenadas pelos modelos serão praticáveis. A ação conjunta destes mecanismos busca aliar a segurança operativa e a eficiência econômica, tarefa difícil e que deve ser continuamente monitorada e aperfeiçoada, visto que aversão ao risco é parte integral da operação, da formação de preços e do planejamento da expansão.
[1] Boletim Diário da Operação. Operador Nacional do Sistema.
[2] Conjuntos de arquivos de entrada e saída do modelo DESSEM, RV2 de outubro de 2020 e RV0 de novembro de 2020. Operador Nacional do Sistema.
[3] Nota técnica ONS DOP-NT 090/2020, “Estudos comparativos das principais diferenças entre os despachos resultantes do modelo DESSEM e a Programação Diária – agosto de 2020”. Operador Nacional do Sistema.
Rodrigo Novaes é analista da PSR Energy
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