O decreto que traz as orientações do Gás para Empregar dividiu o mercado. De um lado, grandes consumidores celebram o texto, avaliado como uma forma de aumentar a oferta e competitividade do gás natural para a indústria no Brasil. Outros agentes, entretanto, veem traços de intervencionismo na proposta, que pode abrir uma onda de judicializações no país.
O texto foi publicado no Diário Oficial da União (DOU) desta terça-feira, 27 de agosto, mas contou, um dia antes, com cerimônia de assinatura com as presenças do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dos ministros Alexandre Silveira, de Minas e Energia, Fernand Haddad, da Fazenda, Rui Costa, da Casa Civil, entre outras autoridades.
Um dos aspectos de maior polêmica no decreto nº 12.153/2024 está relacionado a novas atribuições da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). A agência poderá “determinar, mediante prévio processo administrativo com oitiva das empresas, o aumento da produção de gás natural para campos em produção, inclusive os campos maduros” e intervir nos volumes de gás reinjetados nas plataformas de óleo e gás.
Pelo texto, a ANP também poderá determinar a ampliação de infraestrutura de escoamento, tratamento e processamento de gás natural, além de “estabelecer remuneração justa e adequada” para os titulares destas infraestruturas. Pela regulação, as estruturas de escoamento e processamento de gás natural são privadas, e não públicas ou de monopólio da União.
Assim, até a publicação do decreto, as tarifas deveriam ser negociadas entre as partes, e as autorizações eram concedidas pela ANP após o cumprimento de requisitos conhecidos que não incluíam avaliação de todo o mercado de infraestrutura. Neste contexto, chama a atenção a determinação pela ANP de avaliações sobre o planejamento das redes e níveis remuneração de tais estruturas. “O nível de intromissão regulatória é enorme, e dá margem para possível controle de preços pela ANP”, avaliou um agente do mercado ouvido pela MegaWhat.
A situação tem suscitado comparações com a portaria 455/2012, que estabelecia abertura, para a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), dos preços de energia negociados no mercado livre de energia e levou a uma onda de judicializações no setor.
Controle de níveis de produção e reinjeção de gás
Outro aspecto criticado por parte do mercado é o intervencionismo nos planos de produção dos campos de óleo e gás. Pelo decreto, “respeitada a viabilidade técnico-econômica”, a ANP poderá determinar o aumento na produção de gás e a redução nos níveis de reinjeção do insumo. Os questionamentos são ainda maiores para ativos que já têm plano de desenvolvimento aprovado pela ANP. Na elaboração deste plano, as empresas avaliam, entre outros aspectos, o equilíbrio econômico-financeiro dos ativos.
No país, a maior parte do gás natural está associado ao petróleo – ou seja, gás e óleo estão misturados nos reservatórios e são extraídos juntos. Como o petróleo tem maior valor de mercado, a produção de gás ocorre em função da produção do óleo, sendo difícil regular a produção apenas do gás. Além disso, boa parte da reinjeção de gás natural ocorre para aumentar a recuperação de óleo nos reservatórios, na medida em que mantém dentro dos poços uma pressão que favorece a extração de petróleo.
Relatório do banco BTG Pactual ao qual a MegaWhat teve acesso pondera ainda que a redução nos níveis de reinjeção pode demandar adaptações nas plataformas e necessidade de capacidade adicional de tratamento de gás, reduzindo a viabilidade econômica dos campos de petróleo e consequentemente impactando a produção de petróleo no médio prazo. “Esperamos uma resistência significativa dos agentes do mercado e potenciais desafios legais. Desta forma, não esperamos que o decreto atinja seus objetivos de curto prazo”, diz o relatório.
“O decreto tem a função meritória de ter um olhar estratégico sobre oferta e demanda no setor, traz uma visão panorâmica sobre as pontas. Mas erra ao utilizar meios que não são legais e constitucionalmente possíveis, como tentativa de controle de preços, ingerência sobre instalações privadas e revisão de decisões já tomadas, como os planos de desenvolvimento da ANP”, avalia Lívia Amorim, sócia do Veirano Advogados na prática de Energia, Infraestrutura & Projetos.
Grandes consumidores apoiam o decreto
Do lado dos grandes consumidores, entretanto, o texto foi recebido com entusiasmo. O Fórum das Associações Empresariais Pró-Desenvolvimento do Mercado de Gás Natural (Fórum do Gás), que reúne entidades de diversos pontos da cadeia do gás, avalia que o decreto promove um planejamento integrado para conectar a oferta à demanda e aumenta a eficiência e redução do custo da infraestrutura necessária para esta conexão.
O Fórum do Gás também vê como positiva a “otimização da produção pela redução dos volumes de reinjeção que se mostrarem técnica e economicamente viáveis”.
A Associação Brasileira dos Grandes Consumidores de Energia e Consumidores Livres (Abrace), que faz parte do Fórum do Gás, também divulgou comunicado em que avalia que “todos ganham” com transparência e previsibilidade ao acesso às infraestruturas de gás. “O gás cumprirá sua grande vocação na descarbonização da indústria – e não na carbonização do setor elétrico”, diz a nota.
A Abrace também avaliou que a medida representa uma posição mais clara sobre o papel da União na oferta de gás natural no país e a inclusão dos consumidores no debate sobre energia no país. “As decisões sobre energia elétrica, gás natural e transição energética têm sido pautadas com pouca participação dos consumidores no debate, que estaria agora se reequilibrando”, diz nota da associação.
Após evento nesta quarta-feira, 28 de agosto, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, comentou o decreto. “As rotas de escoamento serão reguladas pela ANP e, portanto, é um conjunto de políticas públicas que visa fortalecer a indústria nacional”, disse o ministro.
Silveira também comentou a resolução do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) que possibilita que a Pré-Sal Petróleo (PPSA), estatal que gerencia os contratos de partilha pela União, acesse diretamente estruturas de escoamento e processamento de gás natural.
“Nós temos que aumentar a oferta de gás, independentemente de onde venha esse gás, para diminuir o preço e reindustrializar o Brasil. Um dos papéis sociais das petroleiras no Brasil é aumentar a oferta de gás”, disse o ministro.