O governo lançou em novembro as bases da Modernização do Setor Elétrico, processo de aperfeiçoamento do marco regulatório, iniciado em 2017, com a Consulta Pública 33. O pacote tem como objetivo resolver impasses e divergências surgidas ao longo dos últimos anos, desde as mudanças regulatórias promovidas em 2004, preparar o setor para as mudanças tecnológicas em curso e viabilizar a abertura do mercado, bem como a concorrência.
O pacote é dividido em sete macrotemas: alocação adequada do pagamento pela segurança do sistema elétrico; abertura do mercado consumidor de energia elétrica de forma ordenada; alocação eficiente de custos e riscos do sistema elétrico; aperfeiçoamento da formação de preços no Mercado de Curto Prazo (MCP); modificações na contratação da expansão do sistema para garantir requisitos necessários de confiabilidade e segurança, com financiabilidade; preparação do segmento de distribuição para a abertura do mercado; e adequação do arcabouço regulatório para a neutralidade na inserção de novas tecnologias.
A divisão foi feita a fim de facilitar o debate e a priorização dos temas, segundo o MME. Nesta segunda reportagem, vamos tratar da preparação do segmento da distribuição para a abertura de mercado. A Lupa na Modernização é uma série de conteúdos da MegaWhat a fim de detalhar os principais aspectos do plano de Modernização do Setor Elétrico Brasileiro.
Um dos principais pontos destacados pelo governo nesse macrotema é a necessidade de se remover restrições e limites previstos nas regras do setor elétrico, a fim de acompanhar as mudanças tecnológicas e o comportamento mais ativo do consumidor de energia.
No entanto, a questão passa pela sustentabilidade do negócio da distribuição, atividade centenária sob risco de sofrer profundamente com a evolução em marcha, mas que possui características específicas e funções essenciais no setor de energia. A distribuição é o elo que atende à grande maioria dos consumidores de energia do país e por ter essa característica tem o papel de arrecadador de recursos para o setor elétrico.
Cenário da distribuição
O Brasil possui um total estimado em 83 milhões de unidades consumidoras, com grande parte delas atendidas por 53 empresas de distribuição – uma quantidade pequena de consumidores é ligada diretamente em redes de transmissão. Ou seja, quando esse imenso contingente paga as contas de luz, as distribuidoras repassam encargos, tributos e tarifas de uso de sistemas de transmissão, bem como as tarifas de energia para as geradoras com as quais fecharam contrato.
O segmento é majoritariamente privado, operado por grandes players mundiais, sendo o restante estatal estadual – recentemente a Eletrobras deixou o segmento – algumas companhias municipais, além de permissionárias e cooperativas de eletrificação rural, que se encontram em processo de mudança de outorga.
Segundo o estudo apresentado pelo grupo de trabalho da Modernização, a receita média de equilíbrio das distribuidoras é composta por 53,5% de custos não-gerenciáveis (Parcela A), como a compra da energia, 17% de custos gerenciáveis (Parcela B), que inclui, por exemplo, mão-de obra e gestão de ativos de rede, e 29,5% de tributos e encargos.
Nos últimos anos, porém, as distribuidoras se viram em meio a uma série de mudanças tecnológicas, regulatórias e de hábitos de consumo que colocaram em xeque o modelo de negócios dessas empresas.
O cenário inclui a abertura do mercado livre, a micro e minigeração distribuída (e a compensação dos consumidores com a injeção de excedentes na rede), a chegada de sistemas de armazenamento, o conceito de smart grid, a eletrificação da mobilidade, fortemente representada pelos veículos elétricos, a eficiência energética, entre outros fatores.
“Não se pode olvidar que a oferta e o consumo de energia dependem da viabilidade das redes que transportam os elétrons, em especial num setor que presa pela confiabilidade do atendimento”, aponta o relatório do GT da Modernização.
O fato é que os estudos para o novo marco legal identificaram que as mudanças tecnológicas e uma eventual autonomia na atuação dos consumidores motivaram demanda por remoção de restrições e limites que existem nas atuais regras do setor.
Expansão da oferta, uma incógnita
Um dos pontos em avaliação é a expansão da oferta de energia. Em 2004, quando entrou em vigor o atual marco regulatório, conhecido como Novo Modelo do Setor Elétrico, um dos pilares das regras foi a obrigatoriedade de 100% de lastro para a negociação da energia, sendo que as distribuidoras deveriam ter 100% de seu mercado atendido, evitando sobras e subcontratações.
A expansão da oferta de energia, planejada com antecedência a partir de previsões anuais de demanda pelas distribuidoras também basearam o modelo – os leilões de energia nova reuniam geradoras e distribuidoras num ambiente, onde se desconhece a demanda de cada empresa, a fim de assegurar a competição. A oferta de energia para o mercado livre, neste caso, ficava a cargo da própria dinâmica do ambiente.
A proposta de modernização tem como princípio, porém, a garantia universal de suprimento, ou seja, todos os consumidores, sejam livres, sejam cativos, devem ter acesso à energia elétrica em volumes e no momento em que dela necessitarem.
A possibilidade de abertura do mercado livre em direção à baixa tensão, já sinalizada pelo governo, tende a agravar um problema que se verificou a partir de 2014, quando uma onda de alta de preços impulsionou a migração de consumidores elegíveis para aquisição de energia incentivada, que fugiam dos altos custos.
Esse comportamento causou sobrecontratação involuntária para as distribuidoras, que fizeram planejamentos de compra de energia em leilões considerando a base de consumidores que detinham até então. Olhar para a ampliação do mercado livre implica, na visão do grupo de trabalho que atuou na criação das novas regras, “em última instância, refletir sobre qual é o relacionamento que se espera que os agentes tenham com as distribuidoras de energia”, segmento que atende a cerca de 70% da carga no Brasil.
“Considerando a abertura do mercado e a possível mobilidade dos agentes entre ambiente livre e regulado, espera-se que cada vez menos o ACR [ambiente de contratação regulada, como é conhecido o mercado cativo] e seus contratos de longo prazo lastreiem a financiabilidade da expansão sustentável (que assegure no longo prazo os atributos necessários para a confiabilidade da operação do sistema) em decorrência da possível redução ou variação da demanda por energia no ACR”.
O tema já vem sendo debatido no governo há algum tempo. Em 2016, o Ministério de Minas e Energia (MME) realizou a Consulta Pública 21, na qual ficou evidente a necessidade de tratar o aumento da flexibilidade do portfólio das distribuidoras, para que elas possam ter “respostas eficazes” ao aumento do mercado livre.
Lá, cogitou-se medidas como criação de mecanismos de integração comercial entre os ambientes livre e regulado, com o conceito da reciclagem da energia, bem como a redução das responsabilidades das distribuidoras na gestão da contratação – um reconhecimento da limitação dos atuais instrumentos de gestão e da necessidade de que as empresas devem ter foco na atividade de infraestrutura de rede e de qualidade do serviço, entre outros pontos.
Já na Consulta Pública 33, que pretendia reformar o marco regulatório em 2017, foi apontada a ausência de ferramentas ativas de gestão do risco de preços da contratação da energia regulada, de modo que os atuais portfólios das distribuidoras possuem “características e assimetrias completamente independentes da eficiência das empresas”.
A CP 33 apontou ainda a eficácia limitada dos mecanismos de alívio e flexibilidade disponíveis para que as distribuidoras possam adequar seus níveis de contratação em função das migrações – como os mecanismos de cessão de sobras e déficits.
GD como fator de perda de receita
A entrada da micro e minigeração distribuída também é listada pelo GT da Modernização como um fator de perda de receita pelas distribuidoras, quando se analisa a extensão da modalidade no faturamento das donas das redes. O tema, inclusive gera controvérsia por causa da proposta de aperfeiçoamento da Resolução 482/2012, que pretende reduzir os subsídios para a modalidade – o que despertou reações mais contundentes de parte do segmento.
Na avaliação do GT, os impactos resultantes da inserção da micro e miniGD se traduzem em perda total de receita e em perdas de Parcela B, o que diminui a capacidade de investimento da distribuidora ao longo dos anos, por consequência. Essa avaliação assemelha-se à feita recentemente por uma pasta do Ministério da Economia.
“No limite, torna insustentável o negócio da distribuição e o pagamento das tarifas pelos consumidores que não instalam a geração”, afirmou o estudo divulgado em junho passado.
A modalidade já ultrapassou a marca de 1 GW de capacidade instalada e a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) estimou que as novas regras para a micro e miniGD podem evira custos adicionais de R$ 55 bilhões até 2035.
Esse aspecto, porém, também é ressaltado pelos empreendedores da energia solar. Rodrigo Sauaia, presidente-executivo da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar), afirma que empresários já sentem efeitos negativos apenas com o debate das regras.
Por sua vez, Marco Delgado, diretor da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee), afirmou que a política pública implementada pelo governo permitiu redução de custos dos equipamentos, atendendo os objetivos iniciais – ou seja, a atual regra já cumpriu seu papel.
Propostas
O GT de Modernização propôs algumas medidas para serem implementadas, ou pelo menos estudadas, a fim de garantir a sustentabilidade do setor. Uma delas é a adoção da tarifa binômia e a avaliação do sinal locacional e horário para todos os consumidores livres ou autoprodutores – medidas essas que requerem estudos de transição e avaliação de impactos.
Outras medidas sugerem a liquidação centralizada dos contratos de energia das distribuidoras, a fim de reduzir as diferenças entre os custos de contratação, e que serviria de transição para um modelo separado de lastro e energia.
“A necessidade de aprofundar análises que levem à separação da comercialização de energia elétrica e dos serviços de distribuição também é imperioso, permitindo que as concessionárias de distribuição sejam separadas em distribuidoras de energia e comercializador regulado de energia”, aponta a análise do GT.