Por: Victor Gomes e Henrique Reis*
A mudança da matriz elétrica brasileira nas últimas décadas trouxe novos desafios para o planejamento do Sistema Interligado Nacional (SIN). O planejamento setorial, que, até pouco tempo atrás, era voltado ao atendimento das necessidades de incremento do consumo médio de energia, passou a se preocupar também com o atendimento do consumo instantâneo.
Nesse sentido, a Resolução CNPE nº 29/2019 criou um novo critério geral de garantia de suprimento, que é o critério para aferição da adequabilidade do atendimento à potência. De acordo com o PDE 2030, esse critério será violado em meados de 2026. No entanto, conforme estudos mais recentes, sabe-se que o SIN pode enfrentar déficit de potência antes dessa data, até mesmo em 2021.
Desse modo, para enfrentar o novo desafio estrutural de um sistema restrito em potência, a lei nº 14.120/2021 autorizou e o decreto nº 10.707/2021 regulamentou a contratação de reserva de capacidade, na forma de potência, por meio de leilões promovidos pela Aneel, sob as diretrizes do MME.
Nesse contexto, após a consulta pública 108/2021, o MME editou a Portaria Normativa 20/2021, que estabeleceu as diretrizes para o primeiro certame a ser realizado nessa modalidade no SIN, com previsão para 21/12/2021. Foi também aberta a consulta pública 115/2021, para discussão da sistemática do leilão.
Como se trata de um certame novo no mercado brasileiro, em que os players não estão familiarizados com a venda apenas de “potência”, as instituições setoriais vêm se mostrando bastante abertas ao diálogo e para prestar esclarecimentos aos interessados.
As principais características do certame de 21 de dezembro, extraídas das diretrizes e sistemática (ainda em consulta pública), são as seguintes:
Desafios para os empreendedores
Apesar do esforço das instituições setoriais para o melhor desenho possível desse leilão pioneiro no país, algumas questões cruciais para o certame ainda não foram definidas, como (i) a publicação do fator f, (ii) bem como a definição dos contornos exatos da obrigação de entrega de potência e as consequências do descumprimento dessa obrigação (ressarcimentos e penalidades).
Essas questões são tão relevantes que podem influenciar até mesmo na competitividade de cada tecnologia a ser ofertada no certame. A definição prévia desses itens não é apenas de interesse dos agentes, como pode parecer. É de interesse do Poder Concedente e dos consumidores (que, ao final, pagam a conta) que sejam cadastrados no certame os projetos mais aderentes possíveis ao atendimento dos requisitos sistêmicos. Eventual má compreensão das regras e dos compromissos de entrega antes da definição da configuração do projeto podem resultar em seleção adversa e até mesmo em indesejadas discussões futuras. Tendo em vista a vedação à alteração de características técnicas dos projetos após o prazo final de cadastramento (art. 9º, §3º, da Portaria nº 102/2016), a configuração das usinas, nesse certame, seria aquela definida até 10/09/2021.
Definição do fator f do Preço da Potência
De acordo com a minuta de portaria de sistemática disponibilizada, o critério de seleção do vencedor do leilão (produto Potência) será o Preço da Potência, que é um parâmetro dado pela soma (i) da Receita Fixa requerida pelo ofertante para a disponibilização da potência (ii) com o custo variável esperado. Para o cálculo do custo variável esperado, é utilizado o CVU da usina e o fator f, que representa o despacho esperado de todos os empreendimentos do certame, a ser calculado pela EPE. Nesse contexto, a depender do fator f, pode-se incentivar empreendimentos com características distintas (ciclo simples ou combinado). Portanto, para otimizar a contratação, em benefício dos consumidores e do sistema, é recomendável que os empreendedores possam ajustar parâmetros de seus projetos após a divulgação do fator f.
Obrigação de entrega de potência e penalidades.
Apesar de haver algumas indicações do que se exigirá das usinas termelétricas comprometidas com os CRCAP, ainda não se sabe exatamente os exatos contornos das obrigações dessas usinas perante o sistema, nem as penalidades a que estarão sujeitos os empreendimentos que descumprirem tais obrigações.
Pela leitura do art. 10 da Portaria MME nº 20/2021, presume-se que o Poder Concedente objetiva a contratação de empreendimentos que tenham aptidão para o cumprimento da programação diária do ONS, ou seja, que estejam disponíveis no dia seguinte ao despacho, nas horas em que o empreendimento for despachado pelo Operador.
No entanto, essa informação não se mostra suficiente para que os empreendedores customizem seus projetos para atender o que o sistema requer.
Muitas questões ainda remanescem em aberto, como as seguintes:
- Qual é exatamente a obrigação de entrega de potência?
- As consequências do descumprimento de disponibilização de potência serão restritas (ou majoradas) nos períodos mais críticos (com CMO alto ou próximo ao risco de déficit)?
- A exigência de disponibilização de potência será a mesma quando o CMO estiver em patamares baixos e em despachos por garantia energética?
- Haverá incentivo para manutenções programadas em meses úmidos, com menor risco de déficit de potência, para garantir toda a potência contratada no período seco ou o gerador poderá ficar indisponível (dentro de seus índices declarados) nos períodos críticos?
Atentando-se para as experiências internacionais em mercados de capacidade, é possível verificar que as obrigações e penalidades são extremamente relevantes para o sucesso da contratação, ou seja, para a contratação mais aderente possível às necessidades sistêmicas.
Por exemplo, na PJM, havia dois produtos distintos no mercado de capacidade, cada produto para atendimento a uma diferente necessidade sistêmica: (i) o Base Capacity Resource, que deveria fornecer segurança no suprimento durante o período quente; e (ii) o Capacity Performance, destinado a contratar recursos disponíveis em qualquer período do ano que a PJM determine uma condição de emergência. De todo modo, todas as obrigações e penalidades relativas ao mercado de capacidade estão minuciosamente detalhadas há anos no Manual da PJM (equivalente às Regras de Comercialização).
Já na ISO New England, o operador do mercado desenhou o produto de capacidade de forma que a obrigação de disponibilidade somente exista em momentos de escassez do sistema (cerca de 30h/ano). De outro lado, apesar de as obrigações serem restritas a poucas horas do ano, a penalidade por descumprimento da obrigação é extremamente rigorosa (cerca de USD 3500/MWh, sendo as obrigações calculadas em intervalos de 5 (cinco) minutos. Dessa forma, por meio das obrigações e penalidades, o Operador desenhou um produto que incentiva os geradores a se prepararem para estarem totalmente disponíveis nos momentos críticos do sistema (que são os momentos de necessidade de potência). De qualquer forma, a Regra de Mercado n. 1 da ISO New England detalha pormenorizadamente, em mais de 200 páginas (antes da qualificação de projetos), todos os direitos e obrigações das partes no mercado de capacidade
- Como se percebe, seria possível desenhar uma obrigação de entrega de potência compatível com as necessidades sistêmicas apontadas pela EPE, de forma que os geradores sejam incentivados a ter toda sua potência disponível quando o sistema realmente precisa, deslocando suas paradas programadas para os meses/horas em que o sistema não terá restrição de potência.
Portanto, por se confundir com o próprio produto a ser contratado, o exato desenho das obrigações e penalidades contratuais não pode ser posterior ao prazo previsto para a definição da configuração dos projetos ou tratada como se esse Leilão fosse um Leilão de Energia tradicional, cuja dinâmica e produtos os agentes já conhecem de antemão.
- Nesse sentido, como a definição da obrigação de entrega de potência e as consequências de seu descumprimento são temas centrais do Leilão de Reserva de Capacidade, de 2021, é crucial que tais parâmetros estejam definidos na própria Portaria de diretrizes. Essa definição é importante para que os interessados tenham a oportunidade de avaliar corretamente a matriz de riscos do Leilão antes do cadastramento dos projetos, com o fim de cadastrar o projeto com a tecnologia mais aderente ao que o SIN necessita contratar no certame.
No limite, e na impossibilidade de inserir esses parâmetros na portaria de diretrizes, deveria ser oportunizado um prazo aos interessados com projetos cadastrados na EPE para a alteração de características técnicas após a aprovação da minuta de CRCAP.
*Victor Gomes é economista e advogado. MSc em Energia pela University of Dundee. 15 anos de experiência em questões regulatórias do setor elétrico. Sócio do Reis Gomes Advogados.
Henrique Reis é advogado especialista em regulação do setor elétrico. LLM em Direito Empresarial pela FGV. Sócio do Reis Gomes Advogados
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