O projeto de lei com as diretrizes para a reforma do setor elétrico, enviado nesta terça-feira, 16 de abril, pelo Ministério de Minas e Energia à Casa Civil, teve uma recepção inicial positiva.
Especialistas e agentes ouvidos pela MegaWhat apontaram que a proposta é um passo importante para modernizar o modelo tarifário, ampliar a abertura do mercado e redistribuir de forma mais justa os custos e benefícios do setor elétrico — ainda que pontos como o aumento de subsídios via Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) e a retirada de incentivos à autoprodução suscitem dúvidas e preocupações.
“Mesmo que ainda pareça pouco, a proposta, no geral, tem mais pontos positivos que negativos, e elimina aquela expectativa de que viesse por aí mais algum voluntarismo elétrico, ou eleitoreiro, como foi a MP 579”, disse o ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) Edvaldo Santana, se referindo à medida provisória de 2012 que foi concebida para reduzir o preço da energia elétrica, mas acabou resultando em desequilíbrios que persistem até hoje.
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A minuta do PL prevê a abertura completa do mercado de energia elétrica até o fim de 2027, a revisão da Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE), o fim dos descontos nas tarifas de uso para fontes incentivadas para o segmento de consumo e a redefinição de critérios para autoprodução, entre outras mudanças.
Abertura do mercado, justiça tarifária e os subsídios
A expansão do acesso ao mercado livre de energia foi um dos pontos mais celebrados. A proposta prevê que, a partir de 1º de março de 2027, consumidores de baixa tensão dos segmentos industrial e comercial possam escolher seus fornecedores de energia. Em 2028, o benefício será estendido aos consumidores residenciais.
“O mercado livre é democrático e oferece um ambiente moderno e competitivo a todos os consumidores que recebem o direito de comprar energia nesse ambiente”, afirmou Rodrigo Ferreira, presidente executivo da Associação Brasileira de Comercializadores de Energia Elétrica (Abraceel).
Para ele, a proposta “equaliza direitos” e corrige distorções do atual modelo. “O setor elétrico é repleto de desigualdades, e essas desigualdades setoriais afetam a desigualdade social do país como um todo. É um momento para corrigir isso”, afirmou.
Alexandre Viana, CEO da Envol, também elogiou a proposta: “A abertura de mercado é um passo necessário para o desenvolvimento sustentável do setor elétrico. A proposta encaminha de forma positiva esse processo, com etapas claras e prazos para regulamentação de temas estratégicos.”
Revisão da tarifa social e redistribuição de encargos
Outro pilar da proposta é a reformulação da tarifa social. O texto prevê a isenção total do pagamento da conta de luz para consumidores de baixa renda com consumo mensal de até 80 kWh, com custeio via CDE.
Luiz Barroso, CEO da PSR, defendeu a atualização da tarifa social: “Ela está desatualizada mesmo, e modernizá-la é importante até para ajudar no combate ao furto de energia, que hoje custa mais de R$ 10 bilhões ao setor”, afirmou.
Para Barroso, um dos responsáveis pela Consulta Pública 33, que iniciou as discussoes sobre a reforma do setor elétrico em 2016, quando era presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), a proposta atual avança ao tentar equilibrar subsídios. “Mesmo que a CDE não fosse reduzida, elevar a tarifa social é um subsídio que até faz sentido”, pontuou.
O impacto financeiro da ampliação dos subsídio da tarifa social deve ser de cerca de R$ 3,6 bilhões na CDE, segundo estimativas do MME. Por isso, a reforma vem com outras iniciativas para reduzir custos hoje subsidiados pelo encargo setorial, como o desconto da tarifa fio para o segmento de consumo, que soma mais de R$ 10 bilhões ao ano.
Mesmo assim, para Alexei Vivan, diretor-presidente da Associação Brasileira de Companhias de Energia Elétrica (ABCE), é preocupante o aumento dos subsídios e dos encargos que o PL poderá causar com as propostas de ampliação da isenção de pagamento da energia para a população. Para o especialista, “há um critério vigente razoável para o desconto na tarifa de energia à população de baixa renda, chamada tarifa social”.
A Associação Brasileira dos Grandes Consumidores de Energia e Consumidores Livres (Abrace) também defendeu cautela na análise das propostas.
“Entendemos importante avaliar com cautela movimentos que procuram fazer o que é certo, o barateamento da conta para pequenos consumidores, mas que podem se apoiar no deslocamento de custos da conta de luz para o preço dos produtos brasileiros com resultados piores do que os benefícios pretendidos”, afirmou a associação.
Incentivos a renováveis e autoprodução
A proposta prevê o fim dos descontos nas tarifas de uso da rede para consumidores de fontes incentivadas ao fim dos contratos vigentes, além de mudanças nos critérios de caracterização do autoprodutor, modalidade que tem isenção de encargos proporcionalmente à energia gerada.
O objetivo não é acabar com a autoprodução, mas limitar a modalidade aos consumidores que realmente sejam investidores da própria energia gerada. Para serem enquadrados como autoprodutores, os consumidores precisarão de demanda de no mínimo 30 MW e participação mínima de 30% no capital social do projeto, além de constar como dono no momento da outorga do empreendimento.
“É muito positiva a iniciativa de reduzir o espaço para ganhos espúrios via autoprodução“, afirmou Edvaldo Santana.
Ainda que seja um ajuste importante no ponto de vista de equilíbrio de direitos entre consumidores, o especialista Alexandre Viana alertou que a mudança pode afetar o ritmo de expansão dos projetos renováveis. “Embora já houvesse expectativa de ajustes, a mudança pode impactar a viabilidade de novos projetos, especialmente se o preço estrutural da energia não se elevar no curto prazo”, afirmou.
O fim do desconto da fonte incentivada para o segmento de consumo também deve ter reações adversas entre os geradores renováveis. Segundo Luiz Barroso, da PSR, o desconto é concedido por lei, não por ato infralegal, como a autorização.
“Na verdade o ato de outorga só repete a lei. E desconto dado por lei pode ser retirado por lei e, como proposto pelo projeto, não pode ser retirado de contratos já assinados. Naturalmente, não quer dizer que vai isso será aprovado no congresso nem que vai ser mantido na Justiça”, afirmou, já antecipando um possível questionamento da mudança pelas renováveis.
Os temidos jabutis e o futuro da reforma
O texto do MME também contempla temas como a criação de novas modalidades tarifárias (como tarifas horárias, multipartes e pré-pagamento), a tentativa de destravar o Mercado de Curto Prazo (MCP), a flexibilização das obrigações de contratação pelas distribuidoras e a criação de um mecanismo de mercado para lidar com os passivos judiciais do risco hidrológico (GSF).
Para o Instituto Acende Brasil, a proposta finalmente enfrenta distorções históricas: “Todos são temas relevantes que já deveriam ter sido tratados há algum tempo pelo governo. Espera-se que na tramitação legislativa o Congresso se dedique a corrigi-lo ou aprimorá-lo. É essencial que o texto final seja construído com responsabilidade e livre da inclusão de jabutis.”
O texto ainda está sob avaliação da Casa Civil e será submetido ao Congresso Nacional. A expectativa do setor é de que a tramitação envolva aperfeiçoamentos técnicos e políticos, mas mantenha o foco em um modelo mais sustentável, justo e eficiente.
“É aperfeiçoar o que tem que ser aperfeiçoado e naturalmente ligar o ‘desjabutificador’ do setor para, coletivamente, evitar a ‘jabutificação’ do projeto”, resumiu Luiz Barroso.