O Tribunal de Contas da União (TCU) avaliou o impasse entre órgãos públicos em relação aos hidrogramas da usina hidrelétrica (UHE) Belo Monte, no Pará, que nunca chegou a operar com o fluxo inicialmente previsto em sua licença prévia. Desde o início de suas atividades, Belo Monte vem operando sob regimes de maior vazão de água para a região da Volta Grande do Xingu. A situação provoca menos impactos ambientais, mas reduz a geração de energia.
“A definição célere e clara por parte do Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] em relação ao licenciamento ambiental da UHE Belo Monte, especialmente quanto ao hidrograma a ser utilizado de forma perene pela usina, é crucial para o planejamento estratégico do setor elétrico brasileiro. A falta de definição sobre o hidrograma e as condições operativas da usina pode dificultar a elaboração de projeções precisas de oferta e demanda de energia, impactando a segurança energética do país”, avalia relatório do TCU, elaborado pelo ministro Benjamim Zymler.
Desde 2021, o empreendimento está em fase de renovação da licença de operação emitida em 2015. O processo está em análise pelo Ibama, sem prazo para sua conclusão. No relatório, Zymler pondera que a indefinição no licenciamento ambiental pode gerar instabilidade e impactos financeiros significativos ao setor elétrico brasileiro, além de maiores emissões com o aumento do despacho térmico, redução da energia armazenada em outros reservatórios e agravamento da judicialização no mercado de curto prazo.
A Unidade de Auditoria Especializada em Energia Elétrica e Nuclear (AudElétrica) do TCU também apontou que os custos da energia no mercado regulado podem subir 1,7% com a manutenção do hidrograma atual de Belo Monte. Esse valor considera a redução da garantia física da usina (em média 39,2% entre fevereiro e junho) e a necessidade de contratação de energia de reserva para compensar a menor geração.
A situação também pode desencadear disputas jurídicas e regulatórias. “A instabilidade regulatória poderia gerar pedidos de revisão contratual junto à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e comprometer a execução dos programas ambientais”, diz o relatório.
Ao mesmo tempo, o documento reconhece a importância da questão socioambiental, e classifica o impasse como um “clássico dilema do setor elétrico”. Apesar disso, o relatório indica que a indefinição pode trazer prejuízos a todos os envolvidos. “Para as populações ribeirinhas e indígenas, a indefinição dificulta a implementação de medidas compensatórias e de mitigação dos impactos socioambientais. Para o setor elétrico, a ausência de uma decisão clara compromete o planejamento energético, podendo gerar instabilidade regulatória e financeira”, indica o documento.
Norte Energia foi afastada do processo
A Norte Energia S.A., empresa que opera a UHE Belo Monte, pediu para fazer parte do processo de fiscalização do TCU como parte interessada, mas teve sua solicitação negada. Segundo o relatório, o processo teve como objetivo verificar a conduta e a eficiência dos órgãos públicos envolvidos na definição do hidrograma da UHE Belo Monte.
O relatório também esclarece que a fiscalização não tem o poder de determinar à Norte Energia condutas de adoção obrigatória e, por isso, não há risco de lesão aos direitos da companhia.
Procurada, a Norte Energia disse que não irá comentar o assunto.
Recomendações
O relatório esclarece que, no impasse dos hidrogramas de Belo Monte, não há ilegalidades que levem o TCU a gerar determinações corretivas. Assim, o documento se propõe a oferecer recomendações.
O texto recomenda que o Ibama intensifique o diálogo técnico com os principais atores do setor elétrico, incluindo o Ministério de Minas e Energia (MME), a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Com isso, o TCU recomenda que, antes de sua decisão final sobre o licenciamento ambiental de Belo Monte, o Ibama também considere os impactos potenciais sobre a geração de energia, a segurança energética e os custos para os consumidores.
O TCU determinou ainda o encaminhamento do relatório à Casa Civil e ao Congresso Nacional, com a informação de que se projeta um aumento de aproximadamente 1,7% nas tarifas de energia elétrica caso o hidrograma mais conservador de Belo Monte seja adotado de forma permanente.
Sobre os hidrogramas de Belo Monte
Desde o início da operação completa da UHE Belo Monte, em 2019, dois regimes hidrológicos foram adotados, sendo que nenhum deles cumpre integralmente o previsto na licença prévia e no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do empreendimento.
A licença prévia e o EIA de Belo Monte previam dois hidrogramas, chamados A e B, que diferem em relação à vazão de água liberada para a região da Volta Grande do Xingu. Tais esquemas deveriam se revezar anualmente durante seis anos, enquanto os estudos complementares fossem concluídos para a definição de um hidrograma definitivo.
Entretanto, Ibama identificou que os impactos socioambientais efetivamente percebidos na região do rio Xingu eram maiores do que o previsto no EIA, mesmo com a adoção de vazão mais próxima à natural no rio. Assim, em 2019 o Ministério Público Federal (MPF) recomendou a substituição dos hidrogramas por um que preservasse as funções ambientais e a sustentabilidade das condições de vida na região.
No mesmo ano, o Ibama concluiu que a adoção do hidrograma com menor vazão para a Volta Grande do Xingu seria “impraticável” e que mesmo o hidrograma com maior vazão poderia levar a uma piora drástica nas condições socioambientais da região. Com isso, o Ibama recomendou a adoção de um novo regime de vazões, mas esta determinação foi revogada após recurso da Norte Energia.
Em 2021, o Ibama e a Norte Energia entraram em consenso para adoção contínua do hidrograma de maior vazão previsto na documentação original da usina, ou seja, sem o revezamento. O prazo deste acordo expirou em fevereiro de 2024, mas o hidrograma continua sendo adotado até a conclusão dos estudos ambientais definitivos. O pedido de renovação da licença de operação está em análise no Ibama, sem prazo para conclusão.
O Ibama alega não ser viável a adoção de um hidrograma único e permanente para a usina, porque o ecossistema do rio Xingu é muito sensível às mudanças climáticas e eventos extremos, como grandes secas ou chuvas intensas. Assim, a autarquia avalia que será necessário fazer revisões periódicas no hidrograma, ajustando a operação da usina para equilibrar a segurança energética e a sustentabilidade ambiental.
Em 2025, após forte tempestade, a linha de transmissão (LT) de Belo Monte foi afetada, o que levou à paralisação da usina por falta de escoamento. Isto resultou em maior vazão à Volta Grande do Xingu, que deveria durar apenas durante os reparos da LT, mas se estendeu por mais tempo em função de pedido do Ibama. Em suas avaliações, o Ibama concluiu que não houve comprovação de prejuízo à geração de energia no período.