A extensão da operação da usina nuclear de Angra 1 (650 MW), da Eletronuclear, por mais 20 anos corre o risco de paralisações e da redução do ritmo de implantação dos subprogramas associados ao projeto devido à insuficiência financeira. A conclusão é de uma análise da auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), no qual se baseou um acordão aprovado ontem, 27 de novembro, pela corte, que apontou que o cenário pode gerar “graves implicações”, como a suspensão da autorização de operação, aumento de custos e elevação da tarifa de energia associada ao empreendimento.
A Licença de Operação Permanente de Angra I vence no dia 23 de dezembro. A Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) aprovou, na segunda-feira, 25 de novembro, a Resolução 331 de 2024, que autorizou a extensão da vida útil operacional da usina por 20 anos, desde que continue a atender rigorosos critérios de segurança nuclear.
Em paralelo, a Unidade de Auditoria Especializada em Energia Elétrica e Nuclear (AudElétrica) do TCU conduzia a análise do pleito, e mesmo depois da publicação da aprovação ratificou o seu posicionamento anterior, que foi acatado no voto do ministro Antonio Anastasia, relator do processo na corte de contas, e que levou a uma série de recomendações.
Determinações da corte
Para os técnicos do TCU, questões financeiras e de governança podem colocar em xeque o andamento do processo de extensão, dada a dificuldade da Eletronuclear, responsável pela usina, em colocar o assunto como pauta prioritária entre seus acionistas, que poderiam entrar como avalistas junto a potenciais financiadores. Considerando o risco de que o programa não seja concluído, a própria estatal Eletronuclear poderá perder a sustentabilidade.
Além de fazer o alerta sobre a sustentabilidade do empreendimento, com base neste em outros apontamentos do relatório, o ministro Antonio Anastasia votou para que a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), junto com a Cnen, o Ministério de Minas e Energia (MME), a Receita Federal e a Eletronuclear definam, em até 180 dias, regras claras sobre práticas contábeis e tributárias para calcular a receita fixa da Eletronuclear.
Governança e saques em gestão de fundo
Enquanto a auditoria foi instalada, inicialmente, para avaliar a implantação do Programa de Extensão de Vida da Usina Angra 1, com possível reaplicação, no médio prazo, para Angra 2, foi avaliada ainda a gestão dos recursos do Fundo de Descomissionamento das Usinas Nucleares Angra 1 e Angra 2 (FDES), que reserva financeira proveniente de componente da receita fixa da venda da energia gerada nas duas usinas ao longo das respectivas vidas operacionais, criado exclusivamente com o objetivo de acumular recursos para custear as atividades de descomissionamento (desativação) das duas unidades geradoras.
Nesta questão, a Corte de Contas estabeleceu que a Cnen, em até 180 dias e em parceria com a Aneel, com o MME e a Eletronuclear, resolva a lacuna regulatória que permite saques unilaterais do FDES pelo gestor do fundo sem supervisão. O objetivo da recomendação sobre a receita fixa é garantir que os recursos do FDES sejam utilizados de acordo com sua finalidade legal.
A decisão exige a definição clara das condições para saques, especificando quando podem ser feitos pela Eletronuclear ou somente com aprovação dos reguladores, além de estabelecer critérios que priorizem a regulação sobre as regras contábeis para proteger o FDES.
“Em outras palavras, a finalidade do FDES é prover condições para que a retirada de serviço das usinas Angra 1 e Angra 2 ocorra de maneira segura, com capacidade para reduzir a radioatividade residual, permitir a contínua proteção da saúde e da segurança dos trabalhadores envolvidos, como também a segurança de longo prazo do público e do meio ambiente, dando um destino adequado às instalações e recompondo o local para uso restrito ou irrestrito”, detalhou o ministro Anastasia.
Resgate não autorizado de valores
Em março de 2024, a Eletronuclear informou que os administradores da empresa aprovaram o resgate parcial no valor de R$ 374 milhões do saldo disponível no Fundo de Descomissionamento, o que representava mais de 10% dos valores acumulados até então. Para a auditoria, o resgate foi autorizado sem que houvesse análise, anuência, consultas ou aprovações pelos agentes reguladores.
A Eletronuclear justificou que, durante a fase de acumulação de recursos iniciada em 2010, a empresa arcou integralmente com os tributos incidentes, tanto sobre as parcelas recebidas e repassadas (receita fixa da Parcela A) quanto sobre a rentabilidade do fundo. O resgate seria, sob essa ótica, uma recomposição do seu caixa.
Entretanto, a AudElétrica compreendeu que o uso dos recursos exigia ação tempestiva e pontual do TCU de maneira a averiguar sua regularidade e, se fosse o caso, evitar novos saques até que as instituições responsáveis verificassem a conformidade do ato. Desta forma, a análise da área concluiu que existem duas lacunas regulatórias relativas ao FDES.
A primeira está associada a divergências em relação à interpretação dada à contabilização da base de cálculo dos tributos aplicáveis ao fundo. A segunda se refere à possibilidade de saques unilaterais no FDES.
Em seu voto, o relator concordou com a conclusão da auditoria no sentido de ser imperativa a necessidade de alinhamento dos entendimentos tributários/contábeis dos atores envolvidos a fim de que o regulado execute com segurança jurídica e regulatória os comandos positivados, com base nas normas ou decisões tributárias/contábeis dos órgãos competentes.
Sobre o segundo ponto, Anastasia entendeu que, sem avaliação e autorização dos agentes reguladores, o uso do fundo pode causar indisponibilidade de recursos no fundo, com potenciais prejuízos tanto à segurança nuclear (matéria de competência da Cnen), quanto aos consumidores de energia elétrica, que teriam que suportar custos adicionais nas tarifas de energia para garantir os recursos necessários ao descomissionamento (matéria de competência da Aneel e do MME).
Regulação
Quanto ao aspecto regulatório, a unidade técnica registrou que, embora a Eletronuclear tenha formalizado a solicitação de renovação da licença de Angra 1 em 2019, cinco anos antes do vencimento da AOP, a decisão do regulador não havia sido anunciada até o encerramento da fiscalização. Embora o fato não constitua propriamente uma irregularidade, a definição tardia por parte da Cnen tem o potencial de restringir a realização de investimentos pela Eletronuclear, visto que a aplicação de recursos sem garantias mínimas de recuperabilidade poderia sujeitar os gestores da estatal a eventual responsabilização.
Com base na análise, o relator seguiu a auditória por entender que há oportunidades de melhoria no processo regulatório, como foco em contribuir para melhorias de segurança jurídica do processo de extensão de vida útil de usinas nucleares, visando a incentivar a garantia da segurança nuclear em contexto mais abrangente, conciliando a sustentabilidade do setor nuclear e a sua segurança.
Situação financeira da Eletronuclear
A Eletronuclear é uma empresa de economia mista que, apesar de ter a Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional (ENBPar) como acionista controladora (com 64,10% das ações ordinárias), tem a Eletrobras como detentora da maior parcela do capital social (67,95%). Atualmente, ocorrem negociações para um acordo entre a Eletrobras e a União sobre diversos assuntos, incluindo o desinvestimento da empresa na Eletronuclear.
Segundo a empresa, o processo de extensão da vida útil autorizado pelo Cnen demandará um investimento total estipulado em R$ 3,2 bilhões entre 2023 e 2027. Os valores serão investidos em quatro parcelas de aproximadamente R$ 720 milhões nos primeiros quatro anos (2023 a 2026) e R$ 320 milhões em 2027.
Os valores apontados pela empresa divergem da análise da corte, que estima um custo total de R$ 3,582 bilhões, valor decorre da adição dos investimentos acumulados entre 2020 e 2023, que somam R$ 518 milhões, com as estimativas de investimentos para os anos de 2024 a 2028 de R$ 3,06 bilhões.
Orçamento incompatível
Em sua auditoria, o TCU pontou que o empreendimento vem sendo adequadamente incluído nas Leis Orçamentárias Anuais (LOA), com previsão de R$ 816,7 milhões para o programa de extensão de vida útil. Entretando, as análises realizadas concluíram que a disponibilidade de recursos da Eletronuclear no ano de 2024, que tem investimento estimado em R$ 707 milhões, é incompatível com as necessidades do programa de extensão.
“Há orçamento, mas não há garantia de recursos financeiros para cobri-lo. A estatal tem manifestado incapacidade de estruturação de contragarantias para fins de obtenção de financiamentos, no curto prazo. Uma das possíveis causas apontadas por ela para essa incapacidade é que uma das garantias que poderiam vir a ser utilizadas – os recebíveis de venda de energia elétrica da usina Angra 1 – já estão comprometidas com financiamento da construção de outra usina, Angra 3, junto à Caixa Econômica Federal (CEF), até o vencimento da licença de operação de Angra 1 (dezembro/2024)”, diz a AudElétrica.
Uma segunda causa apontada pela companhia está ligada à resistência dos atuais acionistas em comparecer como avalistas junto a potenciais financiadores, ‘fato que revela deficiência em aspectos de governança desse processo’, já que não há clareza quanto a priorização da ação.
“Essa falta de recursos sujeitava o empreendimento a risco de não cumprimento de metas operacionais estabelecidas, o que poderia prejudicar o próprio andamento do licenciamento nuclear junto à Cnen. Também se identificou grande dificuldade da Eletronuclear em conseguir firmar o programa de extensão de vida útil de Angra 1 como prioritário para seus acionistas – um problema tipicamente relacionado à governança. Sobre isso, constatou-se que soluções para os problemas financeiros têm enfrentado resistências em alguns dos acionistas”, destacou a área técnica da corte.
Segundo a análise, há uma possível deficiência ocorrida na priorização de recursos entre Angra 1 e as obras de Angra 3, sendo que uma decisão da Eletronuclear, de março de 2024, de suspender a execução dos contratos de Angra 3, por 120 dias, e priorizar o projeto de Angra 1 indica precedente possibilidade.
O relatório menciona também os elevados custos com pessoal, material, serviços e outros da estatal, os chamados custos com PMSO, que, na Eletronuclear, estão acima dos patamares regulatórios, o que pode prejudicar a capacidade de investimento da companhia.
De acordo com o atual cronograma financeiro, o valor de R$ 3.063.721.000 compreende a execução das atividades previstas para a implantação do programa durante os anos de 2024 a 2028. A fonte de recursos para tais investimentos também estavam indefinidas até final de junho de 2024.
Soluções financeiras
O plano de implantação do programa de extensão de vida útil de Angra 1 se estende até 2028, com previsão de atividades previstas para serem executadas via paradas obrigatórias para modernização entre 2025 e 2028, com fiscalização da Cnen.
A primeira parada obrigatória prevista é em abril do próximo ano e, segundo a Eletronuclear, já foi efetivada a contratação de aproximadamente R$ 600 milhões do montante total necessário para as atividades previstas nesta parada.
Ao TCU, a Eletronuclear diz ainda que a ENBPar também propôs algumas soluções emergenciais por meio de concessão de mútuo para a obtenção de até R$ 800 milhões. Essas alternativas têm como objetivo atender aos requisitos de investimentos de curto prazo estabelecidos pela Cnen, que devem ser cumpridos em 2024.
A empresa também diz ter aprovado, junto aos acionistas, cerca de R$ 800 milhões para seus principais projetos de 2024, e o início de negociação junto ao Eximbank (agência de crédito exportação dos Estados Unidos) para financiamento de aproximadamente US$ 400 milhões para investimentos adicionais até 2028 para finalizar a modernização de Angra 1. Para a viabilização dessa operação, é necessário que a Eletronuclear apresente contragarantias.
Também foi pontuado pela empresa ao TCU um pedido de “desagravamento” dos recebíveis de Angra 1, oferecidos em contragarantia em razão do contrato de financiamento firmado com a Caixa Econômica Federal, que foi deferido pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), sendo o ajuste aprovado no âmbito das instâncias de governança da companhia.
A empresa diz ainda que o acionista controlador (ENBPar) concordou com a concessão de um mútuo de R$ 400 milhões (sendo que R$ 226 milhões já teriam sido liberados em julho/2024 e o restante seria firmado no terceiro trimestre do ano), com a cessão dos recebíveis de Angra 1 como garantia, e declarou ter realizado captação de curto prazo com os Bancos ABC (R$ 150 milhões) e BTG (300 milhões).
“Embora a Eletronuclear afirme haver comprometimento da diretoria executiva e do conselho de administração com a tomada de todas as medidas necessárias para viabilizar a extensão e tenha indicado, sem a apresentação de evidências documentais, ter alcançado a solução parcial de curto prazo, ainda não se obteve solução definitiva sobre instrumentos de captação de recursos financeiros para o longo prazo”, diz avaliação da auditoria do TCU.
Para Anastasia, a conclusão da AudElétrica foi no sentido de que a baixa disponibilidade de recursos da Eletronuclear diminui a confiança na viabilidade do cronograma de extensão de Angra 1, o que pode afetar a conclusão da implantação dos procedimentos estabelecidos até 2028, trazendo risco para a concessão da nova Autorização de Operação Permanente (AOP), cujo vencimento previsto é 23 de dezembro de 2024, da usina.