Bernardo Sicsú e Yasmin Oliveira: Um pequeno passo para o regulador, mas um grande salto para o setor elétrico

MegaWhat

Autor

MegaWhat

Publicado

12/Mar/2021 13:00 BRT

Por: Bernardo Sicsú e Yasmin Oliveira

O recente pouso do robô em Marte traz à lembrança a chegada do homem à Lua, que marcou nova era na corrida espacial, permitindo avanços práticos à vida na Terra. Sistema de purificação de água, monitores cardíacos, aparelhos sem fio, embalagens a vácuo, isolantes térmicos, piloto automático e até normas de segurança alimentar foram criados ou aperfeiçoados com base nas pesquisas espaciais que culminaram na célebre frase de Neil Armstrong. Certo, mas e o setor elétrico com isso?

Ora, ao contrário da incorporação às nossas vidas dos avanços tecnológicos que permitiram esses feitos, no setor elétrico às vezes também nos deparamos com tentativas de questionar o passado. O exemplo mais recente é a volta da discussão sobre a governança da formação de preços, não no sentido de seu aperfeiçoamento, como deveria ser, mas na contestação de conquistas que demandaram muito esforço.

Acontecimentos recentes colocaram em xeque princípios e comandos essenciais para a credibilidade do sinal de preços e bom funcionamento do mercado. A Resolução 07/2016 do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), que foi essencial para melhorar a governança da formação de preço, passou a ser questionada, principalmente no que diz respeito à necessidade de previsibilidade e antecedência nas alterações de dados e parâmetros nos modelos computacionais. O tema foi parar na diretoria da Aneel, em caráter cautelar, e deverá retornar em breve para decisão do mérito por parte do colegiado.

O caso do São Francisco

Em 3 de dezembro do ano passado, já diante de um cenário hidrológico muito desafiador, a Agência Nacional de Águas (ANA), atendendo ao Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), que havia pedido anuência poucos dias antes para realizar operação especial nos reservatórios do São Francisco, emitiu “autorização especial” para a operação na bacia especificamente para o mês de dezembro. Por meio da Resolução 51/2020, a ANA acolheu o pedido do Operador e permitiu que as usinas de Três Marias e Xingó praticassem, em caráter excepcional e temporário, vazões diferentes daquelas estabelecidas na Resolução ANA 2.081/2017, que define a regra padrão. Até então, poucos tinham conhecimento dos entendimentos prévios entre o ONS e ANA que redundaram nessa alteração relevante das condições eletroenergéticas.

À noite, mais precisamente às 22h daquela quinta-feira, 3 de dezembro, véspera da publicação oficial dos preços, o Operador informou a incorporação da mudança nos dados de entrada para definição da política operativa e formação de preço. O Informe do ONS caiu como uma bomba no mercado, trazendo grande incerteza e volatilidade. Os preços que seriam publicados dali a poucas horas seriam impactados abruptamente por repentina mudança, sem antecedência ou previsibilidade aos agentes. Segundo simulações do mercado, apenas a mudança nos dados de entrada das usinas do São Francisco representava uma variação nos preços superior a R$ 100/MWh.

Houve forte reação do mercado, que imediatamente se uniu em torno da necessidade de respeito à Resolução CNPE 07/2016. Em especial, ao comando que determina que mudanças nos dados de entrada sejam informadas com pelo menos um mês de antecedência do PMO para poderem formar preço. Com efeito, a letra fria da consagrada Resolução CNPE 07/2016, em seu art. 3º, § 1º, impõe que “alterações nos dados de entrada que não decorrerem de correção de erros ou de atualização periódica com calendário predefinido, conforme regulação da Aneel, deverão ser comunicadas aos agentes com antecedência não inferior a um mês do PMO em que serão implementadas para que tenham efeitos na formação de preço e na definição da política operativa”. 

Não se caracterizando como uma das exceções da CNPE 07, pois claramente não se tratava de atualização periódica com calendário predefinido ou correção de erro, a alteração constituía evidente violação da segurança jurídica e regulatória, em flagrante desrespeito aos preceitos da antecedência, transparência e não surpresa. Não podia o mercado admitir incerteza tão grande, que colocava em risco a credibilidade do processo de formação de preço. Até aqueles que eventualmente poderiam se beneficiar no curtíssimo prazo se insurgiram contra a mudança. Dessa forma, ainda na manhã do dia 4 de dezembro, antes da publicação dos preços oficiais, a Abraceel impetrou recurso com caráter de urgência na Aneel solicitando que o regulador determinasse de maneira imediata o cumprimento da antecedência prevista na Resolução CNPE 07.

A decisão (cautelar) do regulador

O recurso acabou não sendo deferido e, infelizmente, no final naquele mesmo dia 4, os preços para a semana operativa de 5 a 11 de dezembro foram publicados incorporando a nova modelagem no São Francisco, o que ampliou a perplexidade no mercado. O sentimento foi que havia corrido grande retrocesso na confiabilidade da governança do setor, um grande avanço que se acreditava consolidado havia se perdido. Após diversas reuniões, cartas, emails, o tema foi parar na diretoria da Aneel para decisão sobre um pedido de medida cautelar contra as mudanças. A deliberação ocorreu na última reunião pública da diretoria da Aneel do ano passado, em sessão extraordinária, no dia 21 de dezembro. Por 3 votos a 2, o colegiado da Aneel confirmou, de forma cautelar, a necessidade de respeito à previsibilidade, antecedência e transparência nas alterações para formação de preço, em aderência às disposições do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE).

O diretor Sandoval Feitosa, relator do caso, resumiu a situação de forma exímia apontando que “a diretriz política e hierarquicamente superior precisa ser respeitada, e que, portanto, a previsibilidade é o bem maior a ser tutelado nos aperfeiçoamentos dos modelos de formação de preços, sendo necessário que a alteração dos dados de entrada deve respeitar um cronograma mínimo de implementação”. Ainda, segundo ele, “uma coisa é a decisão da ANA, a outra, completamente diferente, é a internalização nos modelos para a formação de preços, há implicações comerciais dessa decisão”.

O diretor Efrain Cruz apoiou integralmente o relator, sendo bastante enfático sobre a importância de a Aneel seguir o texto da Resolução do CNPE, em consonância com a estabilidade de regras, transparência e previsibilidade exigidas para assegurar a integridade das operações comerciais. Cruz, em sua fala, lembrou bem que “nós [Aneel] somos defensores da previsibilidade, nós somos defensores da segurança do mercado, e segurança ela se imprime com previsibilidade, sobretudo em um ambiente de comercialização que é extremamente dinâmico”. 

Como todos sabem, uma alteração imprevisível como essa, que ignora os efeitos no mercado, inevitavelmente aumenta a percepção de risco, com reflexos nos prêmios de risco e no custo da energia. Nas palavras do diretor Hélvio Guerra, que também acompanhou a posição do relator, “a CNPE 07 é uma norma que priorizou a previsibilidade”. Foi pensada justamente para conferir maior proteção ao mercado. Isso porque a priorização da previsibilidade é benéfica para todos os agentes, incluindo os consumidores, na medida em que reduz a possibilidade de manipulações nas operações, mitiga incertezas nos preços e permite maior estabilidade para contratações de energia ou venda de excedentes.

Mas e os encargos?

Aqui, cabe observação importante sobre os encargos, em especial os Encargos de Serviço do Sistema (ESS), cujo valor chegou próximo a exorbitantes R$ 40/MWh em 2021. O grande causador desse aumento foi o despacho fora da ordem do mérito por segurança energética, que fez com que usinas de custo em torno de R$ 1.600/MWh passassem a ser acionadas mesmo com o preço médio de mercado inferior a R$ 200/MWh. Nos últimos 12 meses, segundo dados da CCEE, o custo do despacho por segurança energética foi de R$ 6,4 bilhões, enquanto o custo do descolamento entre o Custo Marginal de Operação (CMO) e o Preço de Liquidação das Diferenças (PLD) foi de R$ 137 milhões. Isso reforça a urgência de aperfeiçoamentos para que os resultados dos modelos computacionais sejam respeitados e a prática do despacho fora da ordem do mérito – que distorce a lógica econômica e mina a competitividade dos consumidores – seja definitivamente eliminada.

O caso de Belo Monte 

Algumas semanas depois dos acontecimentos de dezembro, outro episódio emblemático veio mostrar a importância dos princípios estabelecidos na CNPE 07, dessa vez envolvendo o Ibama e o hidrograma de Belo Monte. O caso concreto expôs o impacto das decisões de órgãos externos no setor elétrico, e como bem colocou o relator Sandoval, se “qualquer alteração da ANA, ou do Ibama, ou de qualquer autoridade, imediatamente tenha impacto na formação de preço, nós estamos atribuindo a uma outra governança uma competência que é explícita da Agência. Nós [Aneel] regulamos o setor de energia elétrica, não é a ANA, não é o Ibama”. Felizmente, nesse caso, a antecedência determinada na CNPE 07 para a formação de preço foi seguida e parte da credibilidade reconquistada.

Abertura de mercado exige regras de mercado

Fato é que o setor elétrico caminha definitivamente na direção de um mercado cada vez mais liberalizado, e como o movimento de abertura se mostra inexorável, é preciso ter regras compatíveis com esse novo ambiente. Em um mercado cada vez mais competitivo, todos os agentes devem ter acesso às informações com antecedência, de forma simultânea e homogênea, para que tomem suas decisões embasadas e em condições iguais. A possibilidade de práticas anticompetitivas deve ser coibida, o que requer olhar atento do regulador. Previsibilidade e reprodutibilidade asseguram maior segurança e liquidez ao mercado e não há prática de gestão de risco efetivamente capaz de endereçar os efeitos de alterações imprevisíveis como essas, que prejudicam sobremaneira o desenvolvimento do setor.

Nesse aspecto, a decisão de mérito que a Aneel está prestes a tomar é crucial. A Resolução CNPE 07/2016 representou grande conquista para todo o setor elétrico. Amplamente celebrada, é um dos pilares para a estabilidade do mercado e, como dito pelo próprio CNPE, “importante para a melhoria do ambiente de investimentos”. É muito relevante a confirmação dos entendimentos externados pela diretoria da Aneel para que possamos criar o ambiente seguro que o futuro exige.

Ainda temos muito para evoluir. Se a ida do homem a lua trouxe avanços práticos à vida na Terra, a CNPE 07 marcou uma nova era na governança da formação de preço, estabelecendo as bases para um melhor funcionamento do mercado. Apenas reconhecendo a sua importância, ratificando o que está escrito e nos livrando de querer rediscutir o passado é que conseguiremos avançar ainda mais nesse tema tão relevante. Um mercado elétrico com previsibilidade, regras claras e governança adequada traz maior credibilidade dos preços, reduz incertezas para a expansão da oferta e assegura que os benefícios da competição se mostrem mais presentes, em benefício da sociedade.

Bernardo Sicsú e Yasmin Oliveira são, respectivamente, diretor de eletricidade e gás e assessora de energia da Abraceel.

Cada vez mais ligada na Comunidade, a MegaWhat abriu um espaço para que especialistas publiquem artigos de opinião relacionados ao setor de energia. Os textos passarão pela análise do time editorial da plataforma, que definirá sobre a possibilidade e data da publicação. 

As opiniões publicadas não refletem necessariamente a opinião da MegaWhat.

Leia mais:

João Sanches escreve: Certificado de Energia Renovável: entenda o que é e como o Brasil está contribuindo

Victor Gomes escreve: Privatização da Eletrobras: capitalização não é a melhor a solução para a modernização do setor elétrico

Vitor Campos escreve: O caso do Texas - quanto custa estar sem eletricidade

Guilherme Dantas e Pedro Vardiero escrevem: Condicionantes para a liberalização dos mercados de baixa tensão (Parte 2)