Por: Rômulo Greff Mariani*
1. Introdução
A atuação estatal no desenvolvimento de uma infraestrutura de gás natural é relevantíssima até aqui, ao mesmo tempo em que a sua gradual retirada é sinal de amadurecimento e pilar fundamental ao novo mercado que se tenta construir. E um importantíssimo segmento da cadeia do gás natural que avança nesse movimento é justamente o de transporte. Sem dúvidas, a situação impõe grandes desafios, dentre os quais o “estabelecimento de um conjunto de regras que permita a esses agentes se coordenarem, uma vez que a Petrobrás não exercerá mais tal função.”[1]
Entre o passado e o presente, algumas medidas importantes já foram adotadas, projetando-se um futuro em que o segmento de transporte pode e deve muito colaborar[2] para o desenvolvimento do assim denominado “Novo Mercado de Gás” no Brasil.[3] Em breves linhas, é disso que o presente texto se ocupa.
2. O passado no transporte do gás natural
A propósito da tão falada verticalização no marcado de gás natural, fruto da forte atuação do ente estatal dominante no desenvolvimento do mercado, fato é que, no segmento de transporte, quem carregava também tomava as decisões sobre quem e como poderia carregar.[4] E na ponta final, também influenciava o destino desse gás aos consumidores, por meio de participações acionárias detidas pela Petrobras na grande maioria das distribuidoras – reguladas em nível estadual por força do art. 25, § 2º da Constituição Federal.
Nesse momento, a contratação do transporte ocorria por meio de concurso público para a alocação de capacidade, aprovado pela ANP, com a taxa de retorno utilizada para cálculo da tarifa de transporte. A Lei do Petróleo já previa livre acesso aos gasodutos nacionais, desde que com a “remuneração adequada ao titular das instalações” (art. 58), algo que não foi bem sucedido na prática, pois apontava para um agente dominante. No segmento de transporte, isso fazia com que, no fim das contas, a capacidade acabasse sendo contratada pela própria Petrobras.
A Lei do Gás, de 2009 em diante, promoveu importantes ajustes ao desenvolvimento específico desse mercado, incentivando uma regulação própria a ele, o que incluía um planejamento de expansão centralizado no MME, com ajuda da EPE. Foram expressamente previstas as atividades de liquefação, regaseificação, carregamento, processamento, tratamento, transporte, estocagem e acondicionamento. O mérito dessas novidades é inegável. Com efeito, “a despeito dos avanços promovidos pela Lei do Petróleo, pouco se observava em termos de diversificação de agentes no setor de gás. Era clara na indústria a visão de que a referida Lei era insuficiente para tratar das especificidades dessa indústria, uma vez que dava ao gás tratamento de derivado de petróleo, e não de fonte primária de energia.”[5]
A Lei do Gás, de 2009, também promoveu alterações, como determinar que a construção e operação de gasodutos com particulares ocorresse por concessão como regra (art. 3º, § 1º), bem como acesso regulado, e não mais negociado, aos gasodutos (arts. 32 e ss.). A concessão passou a ser a forma de outorga para novos gasodutos, em contraponto à autorização prevista na Lei do Petróleo. Mas acerca do quanto já dito sobre a forte verticalização, a realidade até então retratada permaneceu, nada obstante o tema – assim como outros com os quais ainda convivemos – tenha sido objeto de debates.[6]
Apesar do incentivo à entrada de novos agentes, incluindo o tema dos acessos aos gasodutos, a operação permaneceu concentrada na Petrobras, desde a produção, processamento, transporte, e, finalmente, terminando na distribuição e comercialização. Tudo num contexto, permeado por esse momento histórico, em que reconhecidamente “a verticalização das atividades constitui uma estratégia atrativa para as empresas porque permite que as mesmas reduzam seus custos de transação. Por custos de transação entende-se aqueles referentes à negociação, redação e cumprimento de um contrato”.[7]
Esse passado ainda se reflete com bastante força no presente hoje vivenciado. Mas algumas novidades são dignas de serem pontuadas, e demonstram uma evolução importante nesse cenário, conforme capítulo a seguir.
3. O presente no transporte do gás natural
Três destaques serão feitos nesse capítulo.
Primeiro: um importante marco desse presente pode ser referenciado na iniciativa “Gás para Crescer”, datada de 24 de junho de 2016, com o objetivo “de estudar e elaborar propostas para manter o adequado funcionamento do setor de gás, diante de um cenário de redução da participação da Petrobras”.[8] Seu objetivo foi “lançar as bases para um mercado de gás natural com diversidade de agentes, liquidez, competitividade, acesso à informação e boas práticas, e que contribua para o crescimento do País. As premissas dessa iniciativa compreendem adoção de boas práticas internacionais, aumento da competição, diversidade de agentes, maior dinamismo e acesso à informação, participação dos agentes do setor e respeito aos contratos, de modo a construir um ambiente favorável à atração de investimentos, prioritariamente privados.”[9]
Segundo: necessário reconhecer que hoje mais do que nunca se discute a (des)verticalização e o papel (centralizador) exercido pela Petrobras. Em 2016, a Petrobras vendeu 90% de suas ações na Nova Transportadora Sudeste (NTS), que foram adquiridas pelo Grupo Brookfield. A iniciativa representou a entrada do setor privado em cerca de 2,5 mil quilômetros de gasodutos. E não parou por aí, tendo o Plano de Negócios e Gestão (PNG-2017–2021) da Petrobras previsto a sua retirada acelerada de várias etapas da cadeia do gás natural, incluindo o transporte.[10] Ainda dentro da mesma temática, em outro movimento relevante e igualmente noticiado de forma ampla, a Petrobras e o Conselho de Defesa Econômica (CADE) celebraram “Termo de Compromisso de Cessação de Prática”, datado de 08 de julho de 2019, por meio do qual a primeira se comprometeu a vender suas participações societárias na já mencionada NTS, bem como na TAG e TBG. A medida contou com amplo apoio da ANP,[11] com o propósito de aprofundar a desverticalização prevista.[12] A venda de 90% da TAG foi executada em 2019, sendo adquirida pelo Grupo Engie.
Terceiro: iniciativas legais modernizaram alguns aspectos do segmento. Em destaque ao aqui trabalhado, as alterações incentivaram (i) a independência da atividade de transporte, com livre concorrência, transparência e vedação de discriminação no acesso aos gasodutos; e (ii) o foco no sistema de transporte, e não mais em dutos de forma individual, de modo que os serviços sejam oferecidos por entrada e saída. Veremos mais sobre isso no capítulo a seguir, dado que nesse ponto constata-se importante tema para o futuro no segmento de transporte.
4. O futuro no transporte do gás natural
No presente capítulo, alguns pontos do que se pode vislumbrar no futuro serão brevemente abordados. Dito isso, cinco destaques serão feitos aqui.
Primeiro: o segmento de transporte deve ser visto como um todo, a partir da reserva/contratação de capacidade[13] por entradas e saídas. Essa é considerada “A primeira grande escolha que está sendo feita no segmento de transporte de gás natural, quanto ao desenho de mercado.”[14] Não se trata aqui da compra e venda da molécula, mas sim da capacidade de transporte.
Segundo: acesso ao transporte de forma transparente e não discriminatória, evitando conflitos de interesse, tema que traz à tona o assunto “desverticalização”.[15] É certo que “O acesso ao sistema de transporte é pré-condição para o desenvolvimento de um mercado concorrencial de gás natural.”[16]–[17] E nesse particular, algum nível de desverticalização aos que detém e/ou operam os ativos de transporte deve ocorrer.
Seguindo a experiência europeia, isso pode ocorrer a partir de (i.) uma desverticalização das atividades, que, como já visto, está em curso no Brasil, evitando que o detentor dos ativos de transporte tenha participação nos demais segmentos da cadeia. Vale ressaltar que a separação existente hoje, assim como já ocorria na Lei do Petróleo, é jurídica, o que não impede, na prática, a participação cruzada de um mesmo controlador em outros segmentos. De forma diversa, também é possível manter a verticalização, mas com (ii.) a criação de um agente independente para a gestão do sistema de transporte, uma espécie de “Operador do Sistema Nacional (ONS)” no gás natural, chamado de Gestor Independente;[18] ou (iii.) regras que garantam a não discriminação de acesso pelo agente verticalizado.
Terceiro: para que um sistema de transporte nesses moldes possa evoluir, é importante trabalhar a sua interoperabilidade.[19] A introdução simultânea de códigos de rede é importante para que o sistema opere na forma como proposto, de modo a manter sua estabilidade, considerando em especial a retirada de cena de um agente dominante, que até então ligava verticalmente as atividades. Serão definidas regras claras a propósito da participação e responsabilidades dos agentes individuais, permitindo a troca de informações de maneira padronizada. Esses códigos devem ser aplicados a todos os contratos de transporte, atuais e novos.
Quarto: expansão da malha operada de forma centralizada, com ajuda dos planos de investimentos dos operadores. O mercado indicará onde os investimentos são necessários (designados como capacidade nova), a partir de um arcabouço regulatório que permita essa sinalização.[20] Em outubro de 2019, inclusive, a EPE publicou o “Plano Indicativo de Gasodutos de Transporte”, fruto de “reuniões entre a EPE e agentes do mercado de gás natural que atuam tanto no segmento de demanda quanto no segmento de oferta. Além disso, os transportadores de gás natural que já atuam no País, além de potenciais investidores, foram consultados sobre as perspectivas para o setor e sobre as alternativas de expansão vislumbradas nos próximos anos…”[21]
Quinto: segurança remuneratória aos transportadores. A expansão do sistema depende da garantia de retorno que esses investimentos trarão. Ela deve trazer uma alocação justa dos riscos tomados pelo operador do sistema de transporte e pelos demais agentes que operam no mercado. Isso pode se dar por meio de preços fixos ou variáveis. No primeiro modelo, de “preço máximo”, travam-se os custos de quem usa o sistema, estabelecendo os preços máximos que o transportador pode cobrar, e dessa forma alocando a ele mais riscos, já que sua receita varia de acordo com a capacidade dele contratada. Já no segundo sistema, chamado de “preço não máximo”, o risco da demanda está no lado dos usuários, já que a receita máxima do transportador estará definida, e ociosidades no uso da estrutura de transporte serão compartilhadas com eles, variando de acordo com a queda ou aumento do faturamento do transportador.
5. Conclusão
O estudo do passado ajuda a compreender o que vivemos hoje. E felizmente, esse presente projeta evoluções importantes e muito positivas para o desenvolvimento do novo mercado de gás natural no Brasil, sendo o segmento de transporte de extrema importância nesse contexto.
Espera-se que em breve esse futuro comece a se concretizar, mas devemos ter em mente que o trabalho será de longo prazo, e é importante que assim o seja, em benefício de escolhas bem amadurecidas e que venham em benefício de todos.
[1] FGV. Regulação e infraestrutura: em busca de uma nova arquitetura, 2018.
[2] “Em todos os casos, a ampliação da participação de novos agentes passa pelo acesso não discriminatório à infraestrutura, especialmente a de transporte de gás natural. Para tanto, é necessário adequar os incentivos econômicos de modo a promover a transparência, a alocação eficiente de capacidade, a redução dos custos de transação e, por fim, o acesso.” Gás para Crescer. Subcomitê SC2: transporte e estocagem. 1º Relatório. 05 de maio de 2017.
[3] Disponível em: http://www.mme.gov.br/web/guest/conselhos-e-comites/cmgn/novo-mercado-de-gas.
[4] ANP. Nota Técnica n. 004/2018-SIM. Desverticalização na indústria do gás natural. 29 Jun. 2018.
[5] Gás para Crescer. Relatório técnico. Outubro 2016.
[6] “Em quarto lugar, residem incertezas quanto à separação vertical dos agentes que vierem a atuar no segmento de transporte dutoviário. Tecnicamente, quanto maiores as exigências de separação vertical, menores serão os incentivos ao exercício abusivo do poder de mercado por parte do operador da rede de gasodutos de transporte. O substitutivo não avança na direção de definir com maior clareza regras de separação vertical.” SALGADO, Lucia Helena. Rumo a um novo marco regulatório para o gás natural. Revista do IBRAC – Direito da Concorrência, Consumo e Comércio Internacional. v. 15. Jan. 2007. p. 235-249.
[7] ANP. Nota Técnica nº 004/2018-SIM. Desverticalização na indústria do gás natural. 29 Jun. 2018.
[8] Disponível em: http://www.mme.gov.br/web/guest/secretarias/petroleo-gas-natural-e-biocombustiveis/acoes-e-programas/programas/gas-para-crescer.
[9] Gás para Crescer. Relatório técnico. Outubro 2016.
[10] Disponível em: http://www.transeletron.com.br/wp-content/uploads/PNG_2017_2021_apresentacao.pdf.
[11] ODDONE, Décio. Finalmente um mercado de gás no Brasil. In: FGV Energia. O novo mercado de gás natural: opiniões de especialistas, perspectivas e desafios para o Brasil. Agosto 2019.
[12] Nota Conjunta ME e MME. Rumo ao novo mercado de gás. 08 de julho de 2019.
[13] “Capacity is a ‘ticket to ride’. Flowing onto the network without ‘a ticket’ will incur a penal overrun charge”. DAVIES, Gareth. Apresentação feita no IEA Brazil gas workshop. Brasília, 2019.
[14] RESENDE, Larissa. Sistema de transporte de gás natural no Brasil: a caminho da maturidade. FGV Energia. Setembro de 2017.
[15] “Ao mesmo tempo em que a integração vertical das atividades de uma cadeia redunda nos benefícios acima citados, ela também pode resultar na adoção de práticas discriminatórias e anticompetitivas, como a possibilidade do exercício do poder de mercado e a adoção do mecanismo de subsídios cruzados entre os segmentos da indústria.” ANP. Nota Técnica n. 004/2018-SIM. Desverticalização na indústria do gás natural. 29 Jun. 2018.
[16] ANP. Apresentação intitulada “A Transição da Indústria do Gás Natural –IGN para a criação de um ambiente concorrencial”, 2019.
[17] Resolução CNPE nº 16/2019. Art. 2º, II. “Promover a independência dos transportadores, eliminando potenciais conflitos de interesse e garantindo que os serviços de transporte sejam ofertados de forma ampla e não discriminatória”
[18] “Consiste na criação de um novo agente na indústria de gás natural, responsável por coordenar o balanceamento do sistema de transporte e alocar capacidades de transporte ao mercado primário hoje exercidas pela Petrobras.” Gás para Crescer. Subcomitê SC2: transporte e estocagem. 1º Relatório. 05 de maio de 2017.
[19] Decreto nº 7.382/2010, com alterações do Decreto nº 9.616/2018. Art. 13. Parágrafo único. Os transportadores que operem instalações interconectadas deverão atuar de forma conjunta, coordenada e transparente, observado o disposto no art. 52-A.
[20] Decreto nº 7.382/2010, com alterações do Decreto nº 9.616/2018. art. 6°. Caberá ao Ministério de Minas e Energia: I -propor, por iniciativa própria ou por provocação de terceiros, os gasodutos de transporte que deverão ser construídos ou ampliados; (…) § 1º (…) o MME considerará os estudos de expansão da malha dutoviária do País desenvolvidos pela Empresa de Pesquisa Energética-EPE. §2°A EPE elaborará os estudos (…) considerando: os planos de investimentos dos transportadores, as informações de mercado, e as diretrizes do MME. Destaca-se, contudo, que o Projeto de nova Lei do Gás prevê apenas um plano central de expansão conduzido pela União.
[21]Disponível em :
http://www.epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/PublicacoesArquivos/publicacao415/PIG%20%20Plano%20Indicativo%20de%20Gasodutos%20de%20Transporte_EPE2019.pdf.
* Rômulo Greff Mariani é advogado, doutor em Direito pela USP.
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