Por: LGrid Markets*
No dia 25/10/2021, foi realizado o Leilão Emergencial para contratação de Energia de Reserva, com prazo de fornecimento entre maio/2022 e dezembro/2025. O objetivo é a garantia do suprimento no período e a recuperação do armazenamento nos reservatórios hidrelétricos. O leilão contratou 1,22 GW de potência instalada e 775,8 MW médios de energia, principalmente de térmicas a gás natural (97% do total).
O preço médio de contratação foi de R$ 1.563,61/MWh, com deságio médio de 1,2%. Chamou atenção, principalmente, a receita fixa a ser paga nos contratos por disponibilidade: R$ 11,7 bilhões/ano – ou mais de R$ 40 bilhões, durante os 44 meses de vigência dos contratos.
É inquestionável a necessidade das térmicas a gás para garantia no abastecimento. Ao menos desde 2013, o sistema elétrico dá sinais de esgotamento e fragilidade, em virtude da mudança no regime hidrológico. Porém, contratação de energia a quase R$ 1.600/MWh, a um custo total de R$ 40 bilhões, não é um caminho economicamente sustentável. As tarifas de energia, que já estão em níveis bastante elevados, tornar-se-ão impagáveis.
Na realidade, a contratação de energia na modalidade reserva evidencia problemas basilares do planejamento e do modelo do setor elétrico. Sabe-se, há bastante tempo, que as Garantias Físicas das hidrelétricas estão superestimadas – a própria energia de reserva foi criada para tentar suprir essa lacuna. Além disso, os leilões tradicionais – de energia nova – já não conseguem mais contratar a expansão da geração, com o encolhimento persistente do mercado regulado. Restou ao Governo recorrer a um modelo que promove baixa concorrência e preços mais elevados, posteriormente convertidos em encargos setoriais (encargo de energia de reserva – ERR).
A questão que se impõe é: o que poderia ser feito com R$ 40 bilhões em recursos tarifários que não apenas contribuiria com a segurança energética no curto prazo, mas também com a modernização do setor elétrico brasileiro (SEB) a médio e longo prazo?
Alguns caminhos poderiam ser apontados, vamos ilustrar com aquele que melhor se encaixa no “orçamento disponível”: a implantação de medidores inteligentes de energia. O Brasil conta hoje com 85 milhões de consumidores. Estima-se que um medidor inteligente custe entre 400 e 500 reais. Assim, em um cálculo conservador, com R$ 40 bilhões seria possível promover a substituição de 95% dos medidores de energia do país, em 4 anos.
Como isso poderia contribuir com a mitigação da crise no curto prazo e quais seriam os benefícios futuros?
A implantação de medidores inteligentes apresenta uma série de benefícios que superam, em muito, os efeitos do Leilão Emergencial promovido pelo Governo Federal. Alguns dos seus efeitos positivos seriam:
- retirar uma “barreira” à liberalização total do mercado, o que daria liberdade de escolha a todos consumidores do país;
- permitir a aplicação de novas modalidades tarifárias, com discretização horária e perfil geográfico, tornando o sistema de tarifas mais justo e equilibrado;
- permitir a implantação de um amplo programa de resposta pela demanda, fundamental para modular a curva de carga do SIN e evitar novas crises;
- reduzir os dispêndios com perdas técnicas e, principalmente, não-técnicas (as fraudes) – que, juntas, representaram quase R$ 20 bilhões, em 2020;
- colocar o SEB na rota dos mercados de energia modernos e preparar o setor para a integração das novas tecnologias, como os carros elétricos;
- promover a digitalização do setor de energia e o desenvolvimento das cidades inteligentes.
Ainda que não exaustiva, a lista acima demonstra que recursos tarifários bem aplicados podem trazer resultados de curto, médio e longo prazos para o SEB. Enquanto a Itália avança na terceira geração do seu parque de medição e a União Europeia caminha para ter mais de 80% de medidores inteligentes, o Brasil ainda convive com medidores eletromecânicos – facilmente fraudáveis – e tarifação monômia (em R$/kWh), que compromete significativamente o sinal de preços ao consumidor final.
Trata-se, ainda, de solução mais inteligente do que a contratação emergencial de energia de reserva, pois não representa apenas custos, mas traz benefícios líquidos para os consumidores.
Apenas no caso das perdas não-técnicas, o potencial de economia é enorme. Em 2020, as fraudes tiveram custo de R$ 8,6 bilhões para o SEB, dos quais R$ 5,6 bilhões foram repassados diretamente aos consumidores. Isso representa 13,2% do mercado de baixa tensão (em MWh). Diminuir o patamar de perdas implicaria não apenas em redução nas tarifas, mas também em redução no consumo de energia, uma vez que parte desse consumo seria suspenso ou limitado.
A medida também teria efeito imediato sobre a segurança no abastecimento, uma vez que permitiria um melhor gerenciamento da carga de energia, com ampliação do programa de Redução Voluntária da Demanda (RVD) para todos os consumidores do país, sem distinção entre os mercados cativo e livre – evitando distorções e a má alocação de custos entre os ambientes de contratação.
Por fim, seria um passo importante na direção de um mercado mais aberto, concorrencial e descentralizado. É lastimável que após anos de discussão sobre um novo marco legal e regulatório do SEB, as instituições insistam nas mesmas soluções de sempre – caras e ineficientes. Contratação de oferta adicional, a qualquer custo, apenas perpetuará os desafios da crise de 2021.
O setor de energia passa por uma transformação em todo o mundo. O momento exige soluções inovadoras e que coloquem o SEB no real caminho da modernização. Dado que os recursos são escassos e a capacidade de pagamento dos consumidores limitada, é fundamental que as medidas sejam tomadas sempre sob a ótica do melhor custo-benefício. Do contrário, teremos uma conta cada vez mais cara e um sistema cada vez menos eficiente. É preciso romper com essa lógica.
*LGrid Markets – Grupo de Pesquisa em Mercados de Energia do Laboratório de Redes Elétricas Avançadas (LGrid) da Universidade de São Paulo (USP).
Autores: Lucas F. C. Simone, pesquisador do Laboratório de Redes Elétricas Avançadas (LGrid) e doutorando em Eng. Elétrica pela Poli/USP; Gustavo G. Borges, pesquisador do LGrid e doutorando em Eng. Elétrica pela Poli/USP; Maurício B. C. Salles, co-fundador do LGrid e Professor Dr. da Poli/USP
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