Guilherme Costa, Paulo D’Angioli, Rodrigo Tomiello e Wilson Klen: Ponderações sobre da (não) incidência de ICMS na GD

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Publicado

20/Mai/2022 17:00 BRT

Por: José Guilherme Fontes de Azevedo Costa, Paulo Henrique Garcia D’Angioli, Rodrigo Tomiello da Silva e Wilson Klen de Azevedo*

Desde o início da última década, quando da publicação da Resolução Normativa nº 482/2012[1] pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), criou-se grande expectativa dos pequenos consumidores sobre as ações para o fomento das energias renováveis no Brasil, com a Geração Distribuída (GD[2]).

Desde então recordes têm sido quebrados com um incremento de micro e minigeradores de energia elétrica ao nível superior a 10 mil MW de potência instalada em março de 2022[3], ano em que foi publicada a Lei nº 14.300/2022, novo marco legal da GD[4].

A ANEEL, por meio da mencionada Resolução, criou o Sistema de Compensação de Energia Elétrica – SCEE, mecanismo por meio do qual se realiza o encontro de contas entre a energia produzida por fonte renovável, que é injetada na rede de distribuição de energia elétrica, e a energia consumida por uma unidade consumidora.

Caso a quantidade de energia utilizada pelo consumidor-gerador supere o montante por ele produzido, o consumidor deverá pagar apenas pela diferença. Quando a quantidade de energia injetada superar a consumida, o consumidor ficará com o crédito do saldo de energia junto à distribuidora, que poderá ser utilizado em até 60 (sessenta) meses, sem que haja possibilidade de venda de excedente da energia produzida.

Quando se trata de GD, não há previsão de compra ou venda de energia, portanto, quando a ANEEL publicou a RN 482/2012 – com limites para Minigeração até 100 kW e Minigeração entre 100kW e 1MW –, os consumidores puderam investir em sistemas de geração, gerar sua própria energia e utilizar a rede elétrica da distribuidora para armazenar o excedente.

A fungibilidade é tema inescapável quando nos referimos à energia elétrica, mas é forçoso reconhecer que, não obstante possa haver consumo de elétrons diversos daqueles produzidos pelo consumidor, ao menos até o limite da autogeração, seja ela presente ou futura, não faz sentido compreender que existe circulação jurídica mercantil de energia do consumidor-gerador para si próprio.

Em abril de 2015 foi publicado o Convênio CONFAZ (Conselho Nacional de Política Fazendária[5]) n°16/2015[6], prevendo a possibilidade de se conceder isenção do ICMS nos seguintes termos: “Autoriza a conceder isenção nas operações internas relativas à circulação de energia elétrica, sujeitas a faturamento sob o Sistema de Compensação de Energia Elétrica de que trata a Resolução Normativa nº 482, de 2012, da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL”.

Com o advento do art. 8° da Lei 13.169, publicada em outubro de 2015[7], também foram desoneradas as contribuições do PIS e COFINS da energia produzida e consumida pela mesma unidade, em conformidade com a RN 482/2012.

Notemos, porque de relevo: a situação vem sendo resolvida mediante a concessão de benefícios fiscais, seja em âmbito estadual/distrital, seja na seara federal. É aqui onde desejamos ancorar nossa irresignação, na medida em que a autogeração de energia não configura juridicamente nenhuma manifestação de riqueza.

Não há uma circulação de mercadoria e nem uma geração de receita. Dito de outra forma, e atalhando para o nosso ponto de destino: ausente manifestação de riqueza na autogeração de energia, não existe aqui fato gerador de ICMS, PIS, COFINS, IR, CSLL ou, diga-se, qualquer tributo.

Ainda que se queira empregar o conceito contábil de que a não realização de uma despesa é considerada uma receita, no caso da autogeração não há efetivo cancelamento superveniente de despesa original, mas a desnecessidade congênita da despesa, em razão de investimentos realizados.

Logo, não há cancelamento de despesa prevista, mas tão somente a ausência de despesa; por isso, receita não pode(ria) jamais ser. A ausência de circulação jurídica da energia, por seu turno, igualmente afasta a materialidade da hipótese de incidência descrita para o ICMS. A fungibilidade do bem não pode ser óbice à interpretação dos textos normativos, que deve ser realizada à luz dos preceitos constitucionais que lhe presta legitimidade.

Recordando o óbvio: interpretar qualquer item do ordenamento consoante a Constituição da República não é uma opção, mas um dever de todo e qualquer exegeta.

Prosseguindo, é fato que logo na sequência, em novembro de 2015, entrou em vigor nova resolução normativa para GD, a RN ANEEL nº 687/2015[8], a qual reconheceu novo perfil de usuários, os empreendimentos com múltiplas unidades consumidoras (área contígua), a geração compartilhada (consórcio) e autoconsumo remoto.

A RN 687/2015 ainda promoveu a revisão dos limites de potência originais da RN 482/2012, estabelecendo novo limite de 75 kW para Minigeração, e Microgeração entre 75kW e 3MW para fonte hídrica, e até 5MW para demais fontes.

As ampliações promovidas pela RN 687/2015 e pela recente Lei 14.300/2022, que trata do Marco Regulatório da GD, são mudanças aguardadas com muita expectativa pelos pequenos consumidores, mas que vivem à sombra da insegurança dos consumidores e investidores quanto à carga tributária incidente.

E isso acontece na medida em que não está claro que haverá isenção do PIS, COFINS e ICMS para todos os consumidores de GD, enquanto as distribuidoras fazem interpretações diversas sobre os limites destas isenções.

Repete-se: aspecto que requer discussão quanto a legitimidade é a viabilidade de cobrança de ICMS; o estudo correto não deve dar-se na camada de ocorrência ou não de benefício fiscal, mas na completa ausência de adequação entre os fatos reais e a hipótese de incidência normativamente prevista no art. 155 da Constituição e na Lei Complementar nº 87/96 (Lei Kandir).

Assim como já afirmado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) na sua súmula 166[9] e no Tema Repetitivo nº 259[10] e pelo Supremo Tribunal Federal no Tema de Repercussão Geral nº 1.099[11], não há fato gerador quando uma mercadoria circula apenas fisicamente entre estabelecimentos do mesmo contribuinte.

Na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 49/DF[12] (ADC 49, sobre a qual ofertamos algumas considerações[13]), na qual o Ministro Edson Fachin é relator, destacou-se o fundamento segundo o qual “o mero deslocamento entre estabelecimentos do mesmo titular, na mesma unidade federada ou em unidades diferentes, não é fato gerador de ICMS, sendo este o entendimento consolidado nesta Corte, guardiã da Constituição, que o aplica há anos e até os dias atuais”.

É bem verdade que pende julgamento de Embargos de Declaração em desafio à decisão da Suprema Corte, mas se trata de promover contornos de questões diversas, como viabilidade de manutenção de creditamentos e possível modulação de efeitos[14], de modo que a tese principal está firmada e reflete jurisprudência firme e caudalosa dos Tribunais Superiores.

Transportando a abstração dos julgamentos ao nosso caso concreto sob escrutínio, temos em conta que, se no modelo de GD não ocorre qualquer compra ou venda de energia, afinal apenas é permitido produzir e armazenar para consumo próprio, deveria ser mais evidente, explícita e autorreferenciada a não incidência do ICMS[15].

Fato é que atualmente a capacidade de Geração Distribuída nos modelos de Autoconsumo Remoto, Geração Compartilhada e Múltiplas Unidades Consumidoras é equivalente a 2GW de potência, a maior parte com sistemas fotovoltaicos, onde são produzidos aproximadamente 3,6 GWh anuais. Portanto, considerando a energia produzida por estes modelos a incidência indevida de ICMS mostra-se superior a R$700 milhões anuais, situação que acaba por se constituir como mais uma inexplicável barreira para o desenvolvimento sustentável de geração de energia renovável.

E, embora estejamos escorados especialmente em precedentes judiciais, esse papel de conformação e isonomia soa um papel muito mais do legislador, que já se encontra em mora no dever fundamental de cumpri-lo em defesa do meio ambiente.

Se estamos realmente falando sério quanto a promover medidas alternativas de geração de energia renovável, o passo de se criar segurança jurídica e linearidade tributária para todos os aspirantes a geradores-consumidores soa fundamental, mormente quando temos evidentes problemas de infraestrutura para viabilização de novos projetos de grande porte, a exemplo das impossibilidades de conexão no sistema e nossa defasagem em linhas de transmissão.

Mais uma vez temos problemas a enfrentar: escassez de energia elétrica e o risco hidrológico que, de tempos em tempos, assombram o preço da energia no país. Para enfrentar os desafios, nada melhor do que fornecer segurança jurídica e estabilidade regulatória que permitam a realização de investimentos sem o risco de a legislação (lato sensu) ser vetor de instabilidade e abrir brechas até mesmo para discussão acadêmica e prática do ato jurídico perfeito, como na inserção de caudas legislativas (“jabutis”, matérias estranhas ao contexto geral da norma aprovada) em projetos de lei de modernização do setor.

Em suma, pode-se afirmar que a carga tributária incidente sobre a autogeração de energia está em nítido desacordo com a Constituição e serve de desestímulo à implantação e expansão do modelo, além de trazer incertezas ao mercado e colocar em risco a efetividade da política de fomento às energias renováveis no Brasil.


[1] https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=342518 

[2] https://www.gov.br/aneel/pt-br/assuntos/geracao-distribuida 

[3] https://www.gov.br/aneel/pt-br/assuntos/noticias/2022/brasil-ultrapassa-marca-de-10-gw-em-micro-e-minigeracao-distribuida 

[4] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/L14300.htm  

[5] https://www.confaz.fazenda.gov.br/menu-de-apoio/historico 

[6] https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/convenios/2015/CV016_15 

[7] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13169.htm

Art. 8º Ficam reduzidas a zero as alíquotas da Contribuição para o PIS/Pasep e da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social - COFINS incidentes sobre a energia elétrica ativa fornecida pela distribuidora à unidade consumidora, na quantidade correspondente à soma da energia elétrica ativa injetada na rede de distribuição pela mesma unidade consumidora com os créditos de energia ativa originados na própria unidade consumidora no mesmo mês, em meses anteriores ou em outra unidade consumidora do mesmo titular, nos termos do Sistema de Compensação de Energia Elétrica para microgeração e minigeração distribuída, conforme regulamentação da Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL.

[8] https://www2.aneel.gov.br/cedoc/ren2015687.pdf 

[9] “Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte.” 

https://scon.stj.jus.br/docs_internet/VerbetesSTJ.pdf 

[10] https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=200900339844 

[11]Não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia.” 

http://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=1099 

[12] http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5257024 

[13] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/adc-49-dos-limoes-a-limonada-02102021 

[14] https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/icms-em-transferencia-de-mercadoria-stf-20122021 

[15] https://ibdt.org.br/RDTA/critica-a-incidencia-do-icms-sobre-o-excedente-de-eletricidade-compensado-de-acordo-com-a-resolucao-normativa-aneel-n-482-de-17-de-abril-de-2012/

*José Guilherme Fontes de Azevedo Costa, Paulo Henrique Garcia D’Angioli, Rodrigo Tomiello da Silva são advogados e Wilson Klen de Azevedo, especialista em Mercado de Energia

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