Opinião da Comunidade

Comercialização varejista: alguns desafios que se avizinham

Comercialização varejista: alguns desafios que se avizinham

Por: Raphael Donato e Ana Beatriz Boiteux

Apesar de a figura do comercializador varejista ter sido objeto de resolução normativa da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) desde 2013, foi com a publicação da Portaria n. 50, de 27 de setembro de 2022, do Ministério de Minas e Energia (Portaria MME nº 50/2022), que seu papel dentro do Ambiente de Contratação Livre (ACL) cresceu exponencialmente, na medida em que mais pessoas e empresas – sob a ótica das comercializadoras varejistas – “clientes” estão autorizadas a fazer parte desse mercado.

É dentro desse contexto que, desde janeiro de 2024, é possível que clientes de alta tensão com carga individual de consumo até 500 kw/mês migrem do ambiente de contratação regulada para o ambiente livre sem necessidade de adesão à Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Ao migrarem, deverão obrigatoriamente que ser representados perante a CCEE pelo comercializador varejista.

Muito embora esse modelo de contratação seja orientado pela autonomia da vontade, o que o torna mais atrativo aos investidores, o cliente é considerado pela Lei n.º 10.848/2004, alterada pela Lei nº 14.120/2021, consumidor da energia adquirida.

Diante das particularidades do mercado de energia, especialmente do ambiente livre, a decisão do legislador de tratar o cliente como consumidor deve ser vista com enorme cuidado, especialmente quando esse vier a pertencer ao chamado Grupo Tarifário B: consumidores de baixa tensão, como residências, comércios, pequenas indústrias e pequenas propriedades rurais.

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A preocupação aqui, em especial, é uma possível enxurrada de ações abusivas, de clientes recorrendo ao já conhecido argumento protecionista da hipossuficiência, para descumprir contratos e obter vantagens ilícitas. O Judiciário precisará estar muito atento a esse tipo de demanda, dominando a sistemática do mercado e o funcionamento das relações.

Um dos desafios a serem enfrentados na comercialização varejista, que em pouco tempo estará disponível a todos os consumidores de energia, inclusive residenciais, é a compatibilização entre as obrigações bilaterais decorrentes do próprio modelo de contratação livre de energia e as normas e princípios que regem as relações de consumo.

Por isso, é recomendável que essas e outras análises sejam feitas já nas tratativas e elaboração dos contratos que serão firmados entre varejistas e seus clientes.

Tema extremamente sensível relacionado à entrada desses novos clientes no ACL, e que muito provavelmente será levado à apreciação dos órgãos julgadores, é a suspensão no fornecimento de energia elétrica por inadimplemento do cliente.

No ACL, ambiente tipicamente negocial, não há óbice à suspensão do fornecimento de energia por inadimplemento, desde que prevista no contrato firmado entre o cliente e o varejista ou o gerador de energia (art. 4-A, §1º, da Lei n.º 10.848/2004 pela redação dada pela Lei n.º 14.120/2021). Isso ocorre justamente por ser um ambiente de negócios onde prevalece a autonomia da vontade dos contratantes, não havendo falar em serviço público essencial.

Além disso, a Resolução Normativa Aneel n.º 1.011/2022 prevê outras hipóteses de suspensão no fornecimento de energia, não apenas por inadimplemento. Uma delas é o descumprimento pelo cliente de sua obrigação em diligenciar a continuidade da operação comercial antes do término do contrato.

Diferente do ambiente regulado, onde não existe essa obrigação para o cliente e nem esse protagonismo na aquisição da sua energia elétrica que obrigatoriamente deve ser feita com a distribuidora local, no regime de monopólio, no ACL, os contratos são precipuamente celebrados por prazo determinado, de modo que os clientes devem, antes de findo o contrato de compra e venda de energia, diligenciar sua renovação ou buscar a compra de sua energia de outro gerador ou comercializador. Caso contrário, o fornecimento de energia poderá ser suspenso por ausência de relação e o comercializador varejista ficará obrigado tão somente a manter as cargas aos clientes até a execução da suspensão pela distribuidora.

Outro ponto de atenção concerne à necessidade de se respeitar o papel de cada agente envolvido no ACL: distribuidores, geradores e comercializadores. Tratar esses agentes, por exemplo, como uma cadeia de fornecimento representará não apenas um erro jurídico, mas uma enorme injustiça. São empresas distintas, com atividades distintas, que não possuem ingerência umas sobre as outras.

Decisões equivocadas tomadas açodadamente, sensibilizando-se exclusivamente com a argumentação de hipossuficiência, independentemente das particularidades do caso e do mercado, em uma escala de centenas, milhares de clientes pleiteando judicialmente o fornecimento de energia forçado, podem trazer um efeito deletério ao desenvolvimento da comercialização varejista.

Não se sabe ainda qual será o posicionamento dos Tribunais a respeito dos temas relacionados à comercialização varejista, mas a palavra de ordem para a tomada de decisões, sem dúvida, deve ser cautela, com a compreensão do mercado, de seus agentes e de suas especificidades e do efeito em cascata das decisões. A evolução, nos mais variados setores, incluindo energia, traz novas realidades, que muitas vezes não podem ser vistas sob a ótica tradicional das relações anteriormente existentes. É sempre um grande desafio, para o legislador e para o julgador, acompanhar essa evolução.

*Raphael Donato é sócio fundador do TAGD Advogados e membro do Comitê de Energia da Amcham Rio. Ana Beatriz Boiteux é coordenadora da área de Resolução de Conflitos do TAGD Advogados.

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