Por Paulo Gabardo
Há muito o que se de discutir sobre o material da segunda fase da Consulta Pública 35 de 2020 da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). São exemplos a confusão entre efeitos econômicos e efeitos financeiros, o não tratamento da inadimplência para empresas com contratos novos, também expostas à impossibilidade de realizar cortes, e a indefinição quanto à apuração da sobrecontratação. Isso sem entrar em temas jurídicos, como a validade da aplicação de teste de onerosidade excessiva ao caso.
Mas hoje quero falar de custos afundados e da necessidade de evitá-los, preservando a recuperação dos investimentos feitos na atividade de distribuição. Custos afundados emergem quando o ativo não possui um mercado secundário líquido, capaz de fazer com que a decisão de investimento na sua aquisição possa ser revertida com facilidade.
A rede de distribuição de energia elétrica construída não consegue ser desinvestida, mesmo em caso de ociosidade temporária. Soma-se a isso o fato de os investimentos em distribuição serem intensivos em capital e, portanto, terem longo prazo de maturação, além de serem preventivos, ou seja, programados para atender a uma necessidade futura.
Não parece racional que um agente econômico se disponha a correr o risco de uma atividade com essas características a menos que seja capaz de cobrar um preço muito alto que compense o risco de ter que afundar parte do investimento elevado. Menos racional ainda que outro agente venha competir com o primeiro, pois isso só aprofundaria a perda econômica dos dois concorrentes. Por essas razões a atividade de distribuição configura-se em um monopólio natural, ou seja, uma atividade na qual a competição naturalmente não ocorre por ser antieconômica.
Nesse cenário, cabe ao regulador atuar. De um lado, assegurando a recuperação do capital prudentemente investido, ou seja, evitando o afundamento do custo, o que reduz o risco investidor. De outro lado, retirando do agente econômico o poder de fixar o preço, ou seja, anulando o poder monopolista, o que torna o serviço acessível a um custo mais baixo e permite repercutir a redução do risco nas tarifas.
Dados de investimentos realizados pelas distribuidoras nos últimos cinco anos (2015 a 2019), extraídos do Plano de Desenvolvimento da Distribuição, totalizam R$ 75 bilhões em preços correntes, sendo R$ 47,6 bi (63%) para expansão do sistema e o restante aplicado em melhorias e renovação da rede. A pandemia do coronavírus compromete a recuperação desses investimentos, afundando parte dos seus custos. Isso não é novidade, a Aneel já afirmou em mais de uma oportunidade que os custos não caem com a queda do mercado, por exemplo, no processo que negou o diferimento compulsório de pagamentos pelos consumidores do Grupo A. Importa avaliar se o restabelecimento das condições normais de mercado compensaria a perda causada.
É importante nesse caso observar o consumo de baixa tensão (BT). Nessa tensão, a rede de distribuição é paga por meio de tarifas volumétricas em energia, ou seja, quanto menor o consumo, menor a receita, ainda que o custo de recuperar e remunerar o capital investido não se altere. Além disso, por exigir mais etapas de transformação e mais infraestrutura em relação à alta tensão, o custo de capacidade de distribuição na BT acaba sendo mais alto e, logo, o seu peso na receita da distribuidora.
Dados de consumo da BT até maio de 2020, anualizados, apontam queda de 2,3% em relação a 2019. Até então, a única queda no histórico disponível no site da Aneel (desde 2003) havia sido de 0,26% em 2015, ano da revisão extraordinária de Parcela A que resultou em aumento tarifário médio de 30%.
Nos últimos cinco anos, que incluem a queda de 2015, o consumo de baixa tensão aumentou 5% (0,98% a.a.). No número total de unidades consumidoras, variável utilizada pela Aneel como explicativa do custo operacional eficiente, o crescimento no período foi de 10% (2,1% a.a.). Enquanto isso, o investimento médio em expansão foi de R$ 9,5 bilhões por ano.
Esses dados dão fortes indícios de que, em condições normais, o mercado é crescente e seu crescimento implica aumento de investimento. Em outras palavras, há assimetria: a queda do mercado não causa desinvestimento; mas seu crescimento, que é o cenário habitual, aumenta o capital investido. Não parece haver espaço, portanto, para que o crescimento do mercado compense a perda passada. O que não for recomposto, portanto, tende a ser afundado, aumentando a percepção de risco e reduzindo a atratividade econômica da atividade.
Isso é ruim às empresas e aos consumidores. A emissão de dívida ficará mais cara, refletindo no custo de capital regulatório. As desestatizações em curso e as fusões e aquisições no setor privado ficarão menos atrativas do que o investimento em outros setores de infraestrutura, retardando ou frustrando soluções de mercado necessárias para que os ganhos de eficiência, que são compartilhados com os consumidores, se intensifiquem. Mas esse cenário pode ser evitado por uma atuação equilibrada da Aneel, que possui capacidade técnica para tanto.
Paulo Gabardo é presidente da consultoria i4 economic regulation. Entre maio e dezembro de 2018, foi assessor especial do Ministério da Fazenda. Antes, de junho de 2016 a abril de 2018, chefiou a Assessoria Especial em Assuntos Regulatórios do Ministério de Minas e Energia (MME).
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