Opinião da Comunidade

Ana Carolina Calil e Luiza Sato escrevem: A proteção de dados na era do open energy

Ana Carolina Calil e Luiza Sato escrevem: A proteção de dados na era do open energy

Por: Ana Carolina Katlauskas Calil e Luiza Sato*

A eletricidade tornou-se essencial à vida moderna e possibilitou o desenvolvimento de novos equipamentos, processos e modelos de produção pela humanidade. A atual era de dados já é considerada o futuro do setor elétrico e levanta uma série de questões para a dinâmica do mercado.

Nos próximos anos, com a utilização de novas tecnologias e novos conhecimentos, o setor elétrico destravará modelos inovadores de serviços baseados na análise de dados, tal como já vem fazendo, a fim de ofertar soluções que tragam eficiência e sustentabilidade para toda a cadeia e customização para o consumidor. Essa análise de dados só gerará os resultados esperados se feita em grande escala, mediante a intensificação do fluxo de informações entre diferentes agentes.

Nesse contexto, surge o open energy, que pode ser conceituado como o conjunto de iniciativas projetadas para possibilitar o compartilhamento de dados dos consumidores de energia entre os diferentes players do mercado por intermédio das chamadas APIs (Application Programming Interfaces), um conjunto de interfaces padronizadas, por meio das quais diferentes sistemas são integrados, possibilitando que entre eles existam a consulta, o compartilhamento e outras operações envolvendo dados.

O paralelo mais óbvio ocorre com o já popularizado open banking implementado no setor financeiro. Coube aos clientes de bancos consentir com o compartilhamento de dados entre instituições financeiras, a fim de desburocratizar relações e ter acesso a produtos e serviços ofertados por diferentes entidades. Com o open banking, o sistema financeiro passou a ser mais aberto e os clientes assumiram um novo papel de consumidor empoderado, que é o exato propósito do open energy.

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A questão é muito atual dentro da presente discussão da expansão do mercado livre de energia. Desde 2017, o Ministério de Minas e Energia vem discutindo a reformulação do marco regulatório do setor de energia, tomando como pilar a expansão do Ambiente de Contratação Livre (ACL), ou seja, a redução e eventualmente eliminação dos requisitos regulatórios para que consumidores de energia escolham seu próprio fornecedor, sem depender da relação consumidor-concessionária de distribuição.

Referida discussão – que tem como premissa e consequência, respectivamente, a conscientização e o empoderamento do consumidor de energia elétrica – hoje ocorre em sede da Consulta Pública n° 131/2022, conforme conduzida pelo Ministério. Além disso, em sede do Poder Legislativo, o Projeto de Lei nº 414/2021, que traz propostas para a modernização do setor elétrico, estabelece a abertura do mercado para todos os consumidores e a “portabilidade” da conta de luz. Para viabilizar a completa liberdade da escolha do fornecedor de quem os consumidores cativos comprarão energia, o open energy faz-se elemento fundamental.

Com a sua implementação, o open energy trará uma série de benefícios para a economia de energia no Brasil. Como exemplos, os consumidores poderão receber de agentes setoriais diferentes (distribuidoras, comercializadoras/geradores e até mesmo empresas de soluções) ofertas baseadas em seu perfil de consumo, optar por trocar suas informações por descontos na conta de luz ou receber incentivos para reduzir o consumo em determinados períodos. A população ficará mais atenta ao seu consumo de energia e avaliará possibilidades de economia e empoderamento sobre seus gastos. Do outro lado da mesa, os agentes do setor elétrico criarão estratégias baseadas em dados para gerar eficiência no fornecimento ou comercialização de energia e garantir uma precificação mais adequada.

O maior desafio dos agentes do setor para a implementação do open energy diz respeito ao tratamento seguro de dados. Nesse sentido, em 1º de julho de 2022, entrou em vigor a Resolução Normativa nº 964 da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), que dispõe sobre a política de segurança cibernética a ser adotada pelos agentes do setor. Na resolução, a ANEEL estabelece as diretrizes de cibersegurança a serem seguidas, como a transparência, a adoção de boas práticas de segurança da informação e a gestão de incidentes de segurança. É obrigatório que os agentes adotem e periodicamente revisem sua Política de Segurança Cibernética, que deve ser disponibilizada à ANEEL. Igualmente, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) publicou o Manual de Procedimentos de Operação n° RO-CB.BR.01, estabelecendo a rotina operacional envolvendo segurança cibernética no setor elétrico.

Também será de extrema relevância na construção dos moldes do open energy o cumprimento aos preceitos da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018, a “LGPD”), que regula as atividades de tratamento de dados pessoais. Apesar de hoje ainda serem pouco explorados os impactos da proteção de dados no setor da energia, é certo que a LGPD já o impacta enormemente, uma vez ser tratado um imenso volume de dados pessoais pelos diferentes agentes atuantes dentro de toda a cadeia.

Uma das questões primordiais que deverá ser solucionada quando da estruturação do open energy diz respeito à base legal que justificará o compartilhamento dos dados entre agentes do setor elétrico. Caso seja usada a regulamentação do open banking como inspiração, o compartilhamento apenas poderá ocorrer mediante consentimento, que inclusive conta com requisitos mais rígidos do que aqueles previstos pela própria LGPD. Caso haja uma interpretação mais ampla da LGPD, outras justificativas para o compartilhamento de dados poderão ser utilizadas, como execução de contrato, interesses legítimos ou execução de políticas públicas pela administração pública.

Outras obrigações previstas na LGPD também deverão ser observadas pelos agentes dentro do open energy: (i) o cumprimento do princípio da transparência, segundo o qual os consumidores deverão ser muito bem informados quanto às formas de tratamento de seus dados pessoais, incluindo as medidas de segurança e a possibilidade de compartilhamento de seus dados com terceiros; (ii) a implementação de medidas para atender titulares de dados no exercício de seus direitos; (iii) a manutenção de registro das operações de tratamento de dados pessoais que realizarem; (iv) a adoção de política de retenção e eliminação de dados pessoais; (v) a comunicação à Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) – órgão responsável por implementar e fiscalizar o cumprimento da LGPD – e aos titulares sobre a ocorrência de incidentes de segurança que possam acarretar risco ou dano relevante aos titulares; e (vi) a indicação de encarregado pelo tratamento de dados pessoais, que será o canal com os titulares de dados e a ANPD, com a responsabilidade de orientar os colaboradores da empresa quanto às melhores práticas para garantir a proteção de dados pessoais.

Os agentes do setor elétrico deverão também preocupar-se com contratantes com quem compartilharão dados pessoais que estão sob seu controle, considerando a responsabilidade solidária estabelecida pela LGPD em caso de danos ao titular dos dados. Serão, assim, bem-vindos cuidados como a avaliação de fornecedores e a celebração de adendos contratuais contendo cláusulas que descrevam as formas de tratamento de dados pessoais e estipulem as responsabilidades de cada parte.

Considerando a relevância da proteção de dados dentro da discussão do open energy, é esperado e desejado que a ANPD coordene ações com órgãos do setor elétrico para a regulamentação do tema, tal como já ocorre em outras esferas regulatórias como a concorrencial.

A tecnologia, a inovação e o uso de dados passam a ser tão relevantes para o mercado de energia quanto a infraestrutura. Com isso, as discussões de cunho regulatório envolvendo o open energy devem caminhar em conjunto com as ponderações na área da proteção de dados.

*Ana Carolina Katlauskas Calil, sócia na área de Energia de TozziniFreire Advogados, e Luiza Sato, sócia na área de Cybersecurity & Data Privacy de TozziniFreire Advogados 

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