Por: André de Oliveira e Guilherme Ramalho de Oliveira*
O pleito judicial da Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace) para que o Preço de Liquidação das Diferenças (PLD) refletisse o valor da última usina termelétrica acionada gerou dois efeitos: a consolidação do entendimento de legalidade da cobrança de encargos do sistema, consubstanciada pela Lei 13.360/2016, e a aparente ilegalidade da limitação do PLD, seja por um valor teto (PLD máximo) como por um valor piso (PLD mínimo). Mas a forma tempestiva com a qual a definição do assunto se impôs pode ser prejudicial.
Em setembro, a associação obteve liminar parcial de ação civil coletiva que questionava o estabelecimento do teto do preço via decreto 5.163/2004. Nesse contexto, a Justiça determinou um prazo de 90 dias para que a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) editasse regulamento determinando que o PLD seja publicado sem a aplicação do limite máximo e mínimo.
O processo visa proteger consumidores dos custos não gerenciáveis oriundos da existência do PLD máximo e dos despachos emergenciais aprovados pelo Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE): uma vez que o custo das usinas acionadas pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) deve ser recuperado, a geração cujo custo marginal exceda o PLD é cobrada via Encargos de Serviço do Sistema (ESS). Se o PLD passa a representar o custo da última usina acionada, deixa de haver a cobrança do encargo. O pleito assumiu senso de urgência especialmente após a crise hidrológica de 2021, quando os encargos do sistema atingiram cifras bilionárias.
Todavia, o impacto tende a ser relativamente baixo: quando olhamos em detalhes a composição dos encargos ocorridos em 2021, conforme detalhamento disponibilizado pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), 95% dos custos não gerenciáveis foi oriundo dos despachos por segurança energética, modalidade que foi considerada legal. Menos de 5% seria relativa à limitação do PLD, justamente onde o pleito da associação teve efeito (ainda que de modo preliminar, pois cabe recurso por parte do regulador).
O preço teto do PLD (PLDmax) tem a função de proteção dos agentes de mercado em termos econômicos e financeiros quando há escassez de energia elétrica. Essas crises são associadas principalmente à falta de água nos reservatórios e podem ter duração multianual, como no triênio 2019/2021, no biênio 2014/2015 e nos 80 meses entre junho de 1949 e novembro de 1956.
Trata-se de situações de risco sistêmico em que os agentes necessitam de proteção. Isso porque a exposição prolongada a preços que sinalizam condição de escassez é insustentável para a grande maioria dos participantes do Mercado de Curto Prazo (MCP). A elevação de preços provoca a redução de liquidez, removendo a capacidade de esses agentes mitigarem seus riscos após a consolidação da situação de crise. Isto vale para o ACL, mas principalmente para o ACR, onde os mecanismos de gerenciamento das posições contratuais são ainda mais engessados. O desafio na definição do preço teto reside na concepção de um limitador para o mercado de curto prazo que remunere adequadamente o investimento dos empreendedores, mas que também não torne o mercado insolvente, ou próximo disto.
Já a função do piso do PLD (PLDmin) é remunerar as usinas hidroelétricas quando o custo de oportunidade pelo uso da água está muito baixo, uma vez que existem custos operacionais para manter mesmo a geração hidrelétrica, como os custos de manutenção e a Compensação pelo Uso dos Recursos Hídricos (CFURH). A composição desses custos, acrescidos do custo de oportunidade da água, refletiria o custo marginal de operação das usinas. O ideal, portanto, seria que os modelos de otimização incorporassem tais custos em seus algoritmos. Uma vez que esta premissa não corresponde com o status quo, recorre-se ao artifício do piso regulatório, já que, do ponto de vista econômico, não seria correto o despacho dos geradores por uma remuneração inferior ao seu custo marginal.
Além disto, a ausência de um limite mínimo para o PLD seria um fator ainda mais forte de incentivo à descontratação por parte dos consumidores, especialmente nos momentos de abundância de recursos hidráulicos. Também prejudica os esforços de eficiência energética e uso racional da energia, estimulando o desperdício.
Em conjunto, esses limites também operam como balizadores para as perspectivas de remuneração mínima e risco máximo associado a projetos de energia nova. Alterações nos valores previstos impactam os retornos já calculados e devidamente precificados de projetos existentes e modificam as perspectivas de investimento em projetos futuros.
Além disso, as decisões proferidas na esfera jurídica podem causar dissonância de resultados com propostas e aprimoramentos já em curso de implementação no setor. Nesse sentido, vale observar que alguns dos encaminhamentos para o ano de 2023 já enfrentam diretamente parte dos pontos levantados pela Abrace em sua ação.
O primeiro deles é a aproximação da visão de risco do ONS com a visão de risco dos modelos, materializada pelo ciclo de discussões promovidas pela Comissão Permanente para Análise de Metodologias e Programas Computacionais do Setor Elétrico (CPAMP). O grupo atuou para incorporar completamente na ordem de mérito todo o despacho definido por segurança energética, limitando o montante que teria de ser remunerado via encargo.
Outra iniciativa nesse sentido é a implementação, em carácter definitivo, do programa de resposta da demanda, que permite a remuneração direta pelos consumidores que deslocarem seu consumo para momentos de menor criticidade no suprimento, conforme vantagem entre a oferta de preço e o valor do Custo Marginal de Operação (CMO) daquele momento. O resultado desse mecanismo independe do valor do PLD e de seus limites.
Por fim, vale observar que a discussão sobre os limites do PLD não é inédita. Debates aprofundados sobre o tema ocorreram em ao menos três ocasiões: na Consulta Pública nº 009/2014 e na Audiência Pública nº 022/2019 da Aneel, sobre a metodologia de definição dos preços, e no Workshop Internacional Limites de Preços do Mercado de Curto Prazo, realizado pelo regulador em 2019. Como ficou claro nessas discussões, é consensual no setor elétrico brasileiro que qualquer alteração nos limites do PLD deveria ser precedida de estudos aprofundados, avaliação de impactos e discussão ampla entre os agentes, o que não é possível no prazo definido pela Justiça para a mudança.
*André de Oliveira é diretor e Guilherme Ramalho de Oliveira é consultor da Ampere Consultoria.
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