Opinião da Comunidade

Raphael Gomes e Rafael Machado escrevem: TCU e o desconto no fio - insegurança jurídica no Setor Elétrico

Por: Raphael Gomes e Rafael Machado* No dia 22 de novembro de 2023, o plenário do Tribunal de Contas da União (TCU) proferiu o Acórdão nº 2353/2023, visando corrigir a suposta prática de “fracionamento ou divisão de empreendimentos de geração em projetos menores”. Segundo o TCU, essa prática seria ilegal por objetivar o enquadramento simulado de usinas no regime de concessão de desconto nas tarifas de uso do sistema de distribuição e de transmissão (TUSD/TUST), incidentes sobre a energia elétrica gerada por empreendimento com base em fontes incentivadas.

Raphael Gomes e Rafael Machado escrevem: TCU e o desconto no fio - insegurança jurídica no Setor Elétrico

Por: Raphael Gomes e Rafael Machado*

No dia 22 de novembro de 2023, o plenário do Tribunal de Contas da União (TCU) proferiu o Acórdão nº 2353/2023, visando corrigir a suposta prática de “fracionamento ou divisão de empreendimentos de geração em projetos menores”. Segundo o TCU, essa prática seria ilegal por objetivar o enquadramento simulado de usinas no regime de concessão de desconto nas tarifas de uso do sistema de distribuição e de transmissão (TUSD/TUST), incidentes sobre a energia elétrica gerada por empreendimento com base em fontes incentivadas.

A decisão utiliza-se de imprecisões jurídicas e premissas equivocadas para suspender a aplicação, pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), de dispositivo da Lei nº 9.427/1996, vigente “somente” há mais de 27 anos. Além disso, o acórdão coloca o TCU na já complexa teia de entidades da administração pública que se propõem a “resolver os problemas” do setor elétrico com decisões abruptas, que não consideram contexto, precedentes e os impactos de suas medidas no médio e longo prazo – tanto para os agentes do mercado, quando para investidores e consumidores.

Nos termos do acórdão, o TCU determinou que a Aneel “abstenha-se de conceder novos descontos de TUSD e TUST […] até que se estabeleçam critérios regulatórios que tornem eficaz o limite de 300.000 kW por empreendimento de geração de energia elétrica”. Estipulou, ainda, prazo de 180 dias para que a Agência Reguladora apresente “plano de ação para o aprimoramento da regulamentação concernente à concessão de redução, […] com vistas a impedir a concessão do benefício nos casos de fracionamento ou divisão de empreendimentos únicos em projetos menores”.

Para entender precisamente o que está em jogo e as consequências de primeiro nível do acórdão, dividimos o presente artigo nos seguintes tópicos: (i) o contexto dos descontos na TUSD e TUST; (ii) a questionável competência do TCU; (iii) a ilegalidade na presunção de simulação, feita pelo TCU; e (iv) os reflexos para a segurança jurídica e estabilidade regulatória do setor.

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE Minuto Mega Minuto Mega

O contexto dos descontos na TUSD e TUST

A redação do art. 26 da Lei nº 9.427 sofreu diversas alterações ao longo dos anos. Sempre no sentido de estender os benefícios, nunca no sentido contrário.

A primeira previsão de desconto surge da Lei nº 9.648, de 1998, que previu redução não inferior a 50% às tarifas aplicáveis à energia gerada por potencial hidráulico de potência superior a 1 MW e igual ou inferior a 30 MW. Em 2002 e 2003, a partir das leis nº 10.483 e nº 10.762, respectivamente, o rol de usinas se expandiu para contemplar os empreendimentos a partir de fontes eólica, solar, biomassa, e os classificados pela Aneel como cogeração qualificada, mantendo o limite de 30 MW de potência instalada para tais usinas e reduzindo o limite para 1 MW em relação às hidrelétricas. Esse limite para as hidrelétricas seria estendido em duas oportunidades: para 3 MW em 2015, por meio da Lei nº 13.097, e para 5 MW em 2016, por meio da Lei nº 13.360, assim permanecendo até hoje.

Com relação às fontes não-hidráulicas, em 2007, por força da Lei nº 11.488 o “ponto de corte” de 30 MW deixou de considerar a potência instalada da usina para considerar a potência injetada no sistema, o que, na prática, significou o aumento do limite quando considerada a potência instalada. Por fim, em 2015 a legislação setorial, na forma da Lei nº 13.203, inclui o § 1º-A ao caput do art, 26 da Lei nº 9.427 e deu um forte sinal de incentivo ao setor privado para aumento da participação de tais fontes alternativas na matriz elétrica: decuplicou o limite e estipulou que o desconto seria concedido aos novos empreendimentos com potência injetada maior que 30 MW e até 300 MW.

O subsídio às fontes incentivadas encontra-se sob constante ataque como se fosse o único responsável pelas altas tarifas pagas pelo consumidor brasileiro – o que sabemos não ser verdade. As constantes críticas parecem ofuscar o fato de que a atual posição estratégica do Brasil em relação ao mundo quando o assunto é transição energética, muito se deve à expansão sem precedentes do parque renovável na última década, talhada pela iniciativa privada e tendo como um dos pilares de sustentação o desconto na TUSD/TUST. 

A questionável competência do TCU

O primeiro ponto de atenção no acórdão é a questionável competência do TCU para determinar à Aneel como esta deve interpretar uma lei estritamente relacionada à sua própria seara de atribuição. Ao final de toda a argumentação, o acórdão tem como premissa da atuação do TCU a busca por corrigir suposta irregularidade na caracterização do “empreendimento”, mencionado no § 1º-A do art. 26 da Lei 9.427, como apto para obtenção do desconto tarifário.

O TCU parte da equivocada premissa de que a “prática de fracionamento formal de projetos, resultando na apresentação de projetos separados com potência menor ou igual a 300 MW, mas que fazem parte de um mesmo empreendimento, cuja totalidade das potências ultrapassam o limite legal de 300 MW”.

Acontece que a Aneel já tem fixado na regulação as hipóteses em que um grupo de usinas será considerado como um único empreendimento e, mais importante, tais requisitos estão vigentes desde 2009. A Aneel regulamentou há quase 15 anos quais características configuram centrais geradoras como diferentes empreendimentos e quais implicam no entendimento de que se trata de um único empreendimento. Não é verdadeiro, portanto, o argumento do TCU de que haveria omissão regulatória da Aneel. Na verdade, o ato do TCU acaba por balizar a forma como que a agência reguladora deve interpretar texto legal que diz respeito, exclusivamente, ao setor por ela regulado.

Em outras palavras, todo o fundamento pelo qual se sustenta a Teoria da Regulação é fragilizado quando um órgão de fiscalização e controle – ligado ao Poder Legislativo – deixa de analisar aspectos de ilegalidade, para se imiscuir no papel do próprio regulador no que diz respeito à hermenêutica técnica do texto legal.

 Adicionalmente, o custeio do desconto na TUSD e TUST não vem de recursos da União, mas sim de encargos recolhidos nas próprias tarifas. Embora seja um dos principais responsáveis pela idealização e implementação de políticas públicas custeadas pela Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), incluindo o incentivo da redução tarifária em questão, desde 2015 o governo federal praticamente não repassa nenhum valor para a CDE. Em levantamento feito pela Aneel, considerando até o ano de 2019, desde 2015 os repasses de recurso público representam menos de 5% do orçamento total da CDE.

 Essa realidade causa ainda mais estranheza. Não sendo a União a real responsável pelo aporte de recursos para financiar o orçamento da CDE, cuja finalidade é financiar políticas públicas estabelecidas pelos Poderes da própria União, como é possível que tais recursos sejam alvo de fiscalização do órgão que tem por competência garantir a retidão da utilização do erário público? 

A ilegal presunção de simulação

Somada à usurpação de competência, causa preocupação o TCU, órgão auxiliar do Poder Legislativo e sem competência jurisdicional, embasar sua atuação desde a instauração da Representação até a publicação do acórdão nº 2353/2023 em presunção de simulação subjacente às ações dos agentes privados.

O Tribunal presume que a organização de centrais geradoras em potência inferior a 300 MW pretende enganar terceiros e esconder a suposta realidade de se tratar de um só empreendimento. Esta construção retórica pode ser atrativa quando empunhada como uma lança para proteger o interesse público, mas se embasa em conjectura gravíssima e sem fundamento.

Ao utilizar 29 vezes a palavra “simulação” no acórdão, o TCU não atenta a alguns questionamentos imediatos que surgem a partir da realidade fática: se o intuito dos agentes fosse subverter a regulação, por que as solicitações de outorga das usinas são feitas, em sua massiva maioria, em conjunto, por meio de um único requerimento das empresas? Se o intuito é esconder a suposta verdadeira intenção do agente, que seria implementar um só empreendimento superior a 300 MW, o que explica o fato de os pedidos serem de outorgas para centrais em torno de 30, 40, 50 MW, muito abaixo do teto legal?

Apesar da obviedade de que não se trata de simulação, mas sim de conduta conforme a lei e a regulação, praticada há 27 anos no setor, o TCU determinou que a Aneel se abstenha de conceder novos descontos, trace nova regulamentação e dê tratamento aos descontos já concedidos a fim de evitar a concessão do benefício nos casos de fracionamento de projetos. Ou seja, parte-se da presunção de que os pedidos já existentes e os projetos já outorgados são uma simulação em potencial, porquanto se pressuponha que há um fracionamento do que seria, hipoteticamente, o real empreendimento, que supera os 300 MW do texto legal.

A posição do TCU desafia a legislação vigente. A simulação é hipótese de nulidade dos negócios jurídicos, mas sua declaração compete apenas ao Poder Judiciário, por determinação expressa do Parágrafo Único do art. 168 do Código Civil: “as nulidades devem ser pronunciadas pelo juiz, quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus efeitos e as encontrar provadas […]”.

A posição foi reforçada em voto do Ministro Ricardo Lewandovski no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.446/DF pelo Plenário do STF, acompanhado pelo Ministro Alexandre de Moraes:

Por outro lado, deve ser questionado se, quando editada a lei ordinária a que faz referência o dispositivo aqui questionado, poderá a autoridade administrativa, sponte propria, desconsiderar atos ou negócios jurídicos simulados. […] Compreendo que a providência não caberia a qualquer autoridade administrativa, já que apenas ao Judiciário competiria declarar a nulidade de ato ou negócio jurídico alegadamente simulados. Essa é, precisamente, a meu ver, a interpretação que decorre do parágrafo único do art. 168 do Código Civil, segundo o qual as nulidades previstas no art. 167 daquele diploma legal […]

Em termos diretos, não há base legal que permita à ANEEL ou ao TCU decidir que os atos e negócios jurídicos celebrados por agentes privados são simulados, muito menos presumir neste sentido e fazer derivar efeitos dessa presunção. Além de “regular o regulador”, o TCU parte de premissa inexistente de simulação para determinar suspensão da aplicação da Lei pela Aneel (?).

Importante ressaltar que a Lei nº 13.874/2019 determina, logo em seu art. 1º, que a boa-fé do particular perante o poder público é princípio a ser obrigatoriamente observado na aplicação e na interpretação do direito econômico e nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito. Ocorre que um dos elementos essenciais da simulação é a intenção de enganar, iludir terceiros, de modo que não há simulação sem má-fé.

Os reflexos para a segurança jurídica e estabilidade regulatória do Setor 

Por fim, ainda que houvesse competência e/ou fundamento fático e/ou jurídico no acórdão do TCU, é também insuficiente o tratamento proposto para resguardar a segurança jurídica essencial à atração de investimentos. A proposta do TCU é resguardar somente os agentes já outorgados, mas não os pedidos feitos sob a vigência da regulação atual, resultando em instabilidade regulatória.

Em primeiro lugar, tem-se o fato de o TCU ter determinado que a Aneel deixe de aplicar a Lei (não conceda o desconto na TUSD/TUST) até que seja publicada nova regulação. A Lei está vigente há 27 anos, a regulação da Aneel está vigente há 15 anos e, com base em suposições, o TCU determina que a agência reguladora emita outorgas sem do desconto determinado por lei, ou seja, que a Aneel atue contra legem.

Dito de outro modo, o TCU determina que a Aneel avalie os pedidos pendentes, feitos há quase 2 (dois) anos, de acordo com uma regulação que sequer existe atualmenteAo abarcar todas as outorgas não publicadas, a decisão do TCU impõe àquele empreendedor que chegou no Brasil, fez estudos, realizou investimentos, contratou fornecedores e negociou o financiamento de sua usina, a possibilidade de receber sua outorga sem o desconto previsto em Lei.

A decisão do TCU põe em xeque a segurança jurídica do principal setor de atração de investimentos da economia nacional, ameaçando a capacidade de atrair e reter capital privado na longa trilha da industrialização brasileira. Sob o pretexto de “proteger” o consumidor, o acórdão faz crescer o risco Brasil, afasta investimentos e aumenta o spread de investimento no país.

Sob o manto do “interesse público”, é o consumidor brasileiro que vai pagar mais essa conta…

*Raphael é sócio da prática de Energia do Lefosse, e Rafael Machado é advogado do Lefosse, especialista da prática de Energia e Infraestrutura.

Cada vez mais ligada na Comunidade, a MegaWhat abriu um espaço para que especialistas publiquem artigos de opinião relacionados ao setor de energia. Os textos passarão pela análise do time editorial da plataforma, que definirá sobre a possibilidade e data da publicação.

As opiniões publicadas não refletem necessariamente a opinião da MegaWhat.

Outras opiniões:

Fábio Castellini escreve: Por que as empresas de eletricidade deveriam se tornar verdes

Alessandra Amaral escreve: o impacto da crise climática na distribuição de energia elétrica

Camila Martins escreve: o armazenamento como oportunidade de negócio na transição energética no Brasil

Juliano Pereira escreve – Inversão do fluxo de potência: as oportunidades do armazenamento

Rodrigo Ferreira escreve – Texas: preço e competitividade

Erick Sobral Diniz escreve: Desafios para a monetização do gás natural offshore