Opinião da Comunidade

VMCA escreve: Caminhos para a descarbonização: apontamentos sobre infraestrutura elétrica

VMCA escreve: Caminhos para a descarbonização: apontamentos sobre infraestrutura elétrica

Por: Gabriel Dantas Maia, Flavio Marques Prol e Vinicius Marques de Carvalho*

O combate às mudanças climáticas é urgente e a redução substancial das emissões de gases do efeito estufa se apresenta como elemento essencial para o atingimento desse objetivo, como demonstrou a recente Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP26). Para esse fim, a utilização de fontes renováveis para a produção de energia tem sido largamente recomendada. De acordo com estudo elaborado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), ela deveria triplicar ou quadruplicar até 2050, para uma chance provável de que a temperatura aumente menos de 2ºC até 2100, meta geral do Acordo de Paris. A mitigação do problema do aquecimento global, portanto, passa também pela expansão e instalação de uma nova rede de infraestrutura energética. 

No Brasil, a matriz elétrica nacional é historicamente renovável graças a empreendimentos hidrelétricos. A manutenção dessa característica tem feito emergir novos desafios, dado o crescimento de novas fontes renováveis, como biomassa e energias eólica e solar. Para se ter uma ideia, na década de 1970, 89% do abastecimento elétrico nacional derivava de empreendimentos hidrelétricos. Em 2020, eles representavam 65% do abastecimento nacional, embora a participação de renováveis na matriz elétrica tenha permanecido praticamente estável (85%), haja vista o crescimento dessas novas fontes renováveis, que compensaram a diminuição da relevância das hidrelétricas. 

A tendência deve se intensificar, uma vez que as fontes eólica e solar fotovoltaica são estimadas para crescer na matriz nacional, de acordo com o Plano Nacional de Energia 2050, da Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Nos cenários em que a demanda por energia triplica até 2050, a fonte eólica é estimada para representar entre 27% e 40% da energia total produzida, com a energia fotovoltaica atendendo entre 4% e 12% da demanda nacional. Juntas, as fontes representarão vultosa fatia do abastecimento elétrico do país. 

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O aumento da relevância das fontes eólica e solar fotovoltaica na matriz elétrica impõe novos desafios. Como elas não conseguem estocar seu potencial de geração de energia – a exemplo do que uma usina hidrelétrica faz com seus vastos reservatórios de água – passa a ser fundamental estudar se é possível armazenar energia e garantir o atendimento da demanda por eletricidade nacional nos momentos em que os parques eólicos e fotovoltaicos não conseguem operar, por ausência de vento e de sol.

Esse obstáculo está longe de ser unicamente brasileiro. As fontes eólica e solar fotovoltaica são estimadas para desempenhar papel mais relevante no mundo inteiro; relatório da Agência Internacional de Energia (IEA) elaborado em outubro deste ano estima que, para um mundo neutro em carbono em 2050, as fontes renováveis devem representar cerca de 90% da geração de eletricidade, com as fontes eólica e solar fotovoltaica equivalendo a quase 70% do total. Nesse contexto, a busca por soluções de armazenamento de energia configura problema global. Não por acaso, a projeção da BloombergNEF é de que a capacidade dos sistemas de armazenamento deve aumentar mais de 20 vezes até 2030.

No Brasil, a percepção da importância dos sistemas de armazenamento já existe, mas a implementação de projetos é incipiente. A tecnologia mais consolidada de armazenamento que existe hoje em dia, constituída pelas hidrelétricas reversíveis, é de utilização escassa no país: existem apenas quatro usinas dessa modalidade, todas construídas antes da década de 1960. 

Na tentativa de se mudar esse cenário, a Aneel elaborou uma chamada estratégica sobre o tema do armazenamento de energia em 2016, a qual aprovou 23 projetos de pesquisa e desenvolvimento. Além disso, desde 2019, a EPE tem retomado os estudos de inventário para o aproveitamento do potencial de hidrelétricas reversíveis no país, já tendo previsto no Plano Decenal de Expansão de Energia até 2029 a possibilidade de novos empreendimentos desse tipo. Mas foi somente em novembro de 2021 que a Aneel aprovou a primeira aplicação em larga escala de sistemas de armazenamento na rede de transmissão de energia do país e, dois meses antes, que o governo do Estado do Rio Grande do Norte assinou memorando de entendimentos para instalar projeto – pioneiro no país e em toda a América Latina – de armazenamento de energia eólica em larga escala, baseado no uso de tecnologia gravitacional. 

Em outras palavras, o Brasil está desenvolvendo paulatinamente um novo tipo de infraestrutura elétrica capaz de armazenar energia como forma de lidar com os desafios relacionados ao fornecimento de eletricidade, e esse movimento deve ser intensificado no contexto de alta inserção de fontes renováveis de geração variável, como as energias eólica e solar.

Uma forma específica de armazenamento de energia que tem sido bastante enfatizada nas discussões recentes sobre energia e mudanças climáticas é o hidrogênio verde. A utilização do hidrogênio para produzir energia não é novidade, mas a possibilidade de se empregar energias renováveis no processo de eletrólise da água – dando vazão a um hidrogênio sustentável, por isso o adjetivo “verde” – tem movimentado o setor, que vê no combustível uma oportunidade para, além de armazenar o potencial elétrico proveniente de fontes renováveis intermitentes, expandir objetivos de descarbonização para outros segmentos da atividade econômica, em que a redução das emissões é delicada.  Seria possível solucionar dois empecilhos de uma vez só, com o hidrogênio permitindo um melhor aproveitamento do potencial elétrico das fontes renováveis variáveis e a descarbonização de setores de difícil corte de emissões. A sua importância estratégica já foi reconhecida, por exemplo, pela União Europeia, no âmbito do ambicioso Green Deal, em que se definiu o hidrogênio como “chave” dentro dos futuros sistemas energéticos do bloco. Estimativas apontam que o hidrogênio verde deve mobilizar mais de 300 bilhões de dólares em investimentos até 2030.

No Brasil, o Conselho Nacional de Política Energética listou o hidrogênio enquanto tema a ser priorizado nos esforços de P&D fomentados pelo governo, além de ter expressamente demandado a elaboração de diretrizes para um “Programa Nacional do Hidrogênio”, dado o interesse em se desenvolver esse mercado no país, em bases internacionalmente competitivas. Os encaminhamentos iniciais foram apresentados em agosto, e a estratégia completa deve ser apresentada no início de 2022. Enquanto isso, a consultoria internacional BloombergNEF estima que o Brasil apresentará preços altamente competitivos de hidrogênio verde até o horizonte de 2030, o que deve estimular a produção do combustível no país. 

A despeito da ausência até o momento de um programa federal robusto acerca do hidrogênio, iniciativas subnacionais já começam a despontar de olho na fonte energética. Cinco estados no Nordeste já têm projetos para o hidrogênio verde, com parte considerável da produção destinada ao mercado internacional. Na região sudeste, o estado de Minas Gerais lançou o programa “Minas do Hidrogênio”, que pretende não só desenvolver o combustível, mas toda a cadeia produtiva relacionada ao segmento, com equipamentos e desenvolvimento tecnológico. São avanços na infraestrutura elétrica que, além de potencialmente permitir a descarbonização de outros segmentos da economia a partir de energias renováveis, permitem ganhos em termos de comércio internacional e de desenvolvimento tecnológico local.

Para além das apostas no armazenamento de energia e na produção de hidrogênio verde, a produção de energia elétrica que contribua para a descarbonização pode passar ainda pelo uso de usinas termonucleares, além das poluentes e historicamente mobilizadas usinas térmicas, como afirmou o Ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, sobre o próximo Plano Decenal de Expansão de Energia, o qual preverá a construção de uma nova usina nuclear. Ainda, o processo de desestatização da Eletrobrás deve prever a transferência de recursos para que as obras de Angra 3, que se arrastam há anos, sejam concluídas. São indicativos de que a participação nuclear brasileira pode voltar a crescer nos próximos anos.

Sem desconsiderar as controvérsias relacionadas a esse tipo de energia, é fato que as usinas nucleares conseguem produzir eletricidade sem emitir gases do efeito estufa, de forma que seria possível enquadrá-las como uma fonte “renovável”, ainda que os impactos ambientais devessem ser considerados adequadamente sem uma visão parcial e limitada sobre o tema. Além disso, o processo de produção de energia das usinas nucleares é ininterrupto, o que contrasta com a variabilidade da oferta das fontes eólica e solar. Todos esses fatores precisam ser considerados quando da construção de um sistema elétrico resiliente e sustentável.

A urgência de enfrentarmos as mudanças climáticas é evidente. A incorporação de novas fontes renováveis como a solar e a eólica trazem consigo desafios e oportunidades, que devem ser equacionados para tornar factível o anseio por sustentabilidade. Lidar com a variabilidade da produção energética dessas fontes com soluções de armazenamento, incorporação de fontes também sustentáveis e de geração constante são alternativas cruciais. Para a nossa sorte, a revolução dessas fontes renováveis também está a caminho e chega com força, oferecendo a possibilidade de um futuro mais otimista. Os governos federal e estaduais terão papel central para que o otimismo se confirme no país.

*Gabriel Dantas Maia é mestre em Direito e Desenvolvimento pela FGV, com graduação em Direito pela USP e advogado em VMCA. 

*Flavio Marques Prol é sócio de VMCA, é doutor, mestre e bacharel em direito pela Universidade de São Paulo. Foi Fox Fellow no MacMillan Center for International and Area Studies da Universidade de Yale e Visiting Scholar no Institute for Global Law and Policy na Harvard Law School.

*Vinicius Marques de Carvalho é advogado e professor de direito comercial da USP. Ex-presidente do Cade.

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