Wagner Ferreira*
Parte 2 – O que fazer para garantir o sistema elétrico funcionando adequadamente?
Na primeira parte deste artigo, publicada na última semana na aqui MegaWhat, abordamos os principais pontos que colocam o sistema elétrico em risco. Como me referi anteriormente, o objetivo desta série de artigos é provocar algumas reflexões a fim de contribuir para o processo de modernização do setor elétrico, com enfoque na sustentabilidade do serviço público de energia elétrica.
Muito bem, retomemos a pergunta central deste capítulo: “o que fazer para garantir o sistema elétrico funcionando adequadamente? Respondemos em uma linha: garantir a isonomia entre os usuários no pagamento dos custos do sistema elétrico.
Nesse sentido, muitos são os estudos, consultas e atos sobre a modernização do setor elétrico. Principalmente, a partir de 2017, com as conclusões da consulta pública (CP 33 do Ministério de Minas e Energia), as medidas necessárias a essa chamada modernização começaram a ganhar forma e cor. De lá para cá, Aneel, MME e o Congresso Nacional começaram a ressonar essas questões e conclusões por meio de vários expedientes, projetos e atos.
O principal mote da modernização é justamente adequar o atual modelo do sistema elétrico aos também chamados de recursos energéticos distribuídos (geração distribuída, carros elétricos e outros), bem como preparar a abertura do mercado de energia, assegurando a sustentabilidade do Sistema Elétrico como um todo. É, em tese, o que precisamos adotar para garantir a sustentabilidade do setor elétrico, preservando a confiabilidade elétrica e integrando as mudanças advindas da transição energética.
Inúmeras são as transformações legais e infra legais. Para dar uma dimensão adequada dessas alterações, é muito importante conhecer algumas mudanças nos projetos de lei nº 1917/2015 e 414/2021 (ex PLS 232/2016), a exemplo.
De forma a contribuir na adequação dos comandos próximos, destacamos, pelo menos, cinco questões relevantes que merecem atenção a fim de permitir a devida segurança, sustentabilidade e a confiabilidade do setor elétrico, deixando-o robusto para acomodar o conjunto de transformações tecnológicas, em especial, para as gerações futuras:
Implantação de uma tarifa binômia / multipartes: essa alteração assegurará melhor caracterização dos custos do Sistema Elétrico, partilhando e monetizando, de forma transparente, a parte referente à energia elétrica (insumo) e a parte relativa ao uso do sistema elétrico (infraestrutura de redes), o que permitirá a devida alocação, com justeza, de custos ao usuário final, independentemente de sua condição (seja ele do mercado livre, seja ele um prossumidor, seja ele um usuário do mercado cativo, ou outra figura que venha a surgir). Como hoje a tarifa é monômia, esses custos não podem ser individualizados, e por conta disso, uma série de distorções não são corrigidas levando a ineficiências alocativas e cobranças desproporcionais e sem isonomia entre os usuários finais.
Separação das atividades de distribuição da comercialização regulada: essa alteração, na mesma linha da anterior, permitirá melhor transparência de alocação dos custos, permitindo maior precisão na gestão dos custos do sistema elétrico e das atividades de comercialização do chamado mercado regulado. Como é hoje, a administração da comercialização regulada (ou seja, aquela que a distribuidora precisa realizar para atender a segurança do fornecimento de todo o Sistema Elétrico) é realizada pelas distribuidoras de energia, cuja operação, apesar de altamente complexa, é neutra (ou deveria ser) para as distribuidoras do ponto de vista econômico e financeiro. Na medida em que o mercado de energia elétrica se torna cada vez mais livre e aberto, não faz sentido essa concentração de custos e riscos decorrentes da atividade de comercialização dentro dos negócios das atividades das distribuidoras de energia elétrica e com rebatimento no usuário do mercado cativo de forma mais concentrada.
Solução para os custos dos contratos legados: A distribuidora firma, a partir de leilões de compra de energia, inúmeros contratos que asseguram, dentre outras coisas, a financiabilidade, a confiabilidade e a segurança do setor elétrico. Isso quer dizer que, no final do dia, são os contratos de curto, médio e longo prazo firmados pelas distribuidoras de energia elétrica, que, com chuva ou sol, asseguram o devido lastro energético para o setor elétrico. Como dito acima, esse lastro (ou essa segurança) é custeado de forma desigual e desproporcional pelo mercado cativo em benefício aos demais usuários do Sistema Elétrico, pois as regras vigentes permitem essa deficiência alocativa. Portanto, é necessário que todos os usuários desse Sistema Elétrico paguem um valor justo e isonômico por essa desejada e necessária segurança elétrica. Algumas alterações já começam a ganhar forma e força legal, como a que prevê que o usuário, ao migrar para o ambiente livre, assuma os seus custos pela segurança e confiabilidade do Sistema Elétrico (ver recentíssimo exemplo trazido pelo Decreto n. 10.939 de 13 de janeiro de 2022, no seu art 3º, §10). A criação de um encargo a ser pago por todos os usuários desse sistema elétrico, para reduzir a desproporcionalidade atual de pagamento pelo mercado cativo, também é uma solução necessária.
Engajamento dos três poderes na orientação, combate e prevenção ao furto de energia: tal como ocorre com as ações de combate e orientação em torno da “pirataria”, com um envolvimento claro e interligado entre vários agentes públicos (Inteligência, Integração entre as policias, Executivo formulador de políticas, Estado, Ministério Público, Judiciário e Legislativo) e órgãos de proteção do consumidor (Senacon, Procons, por exemplo), é preciso ter uma política clara de enfrentamento, orientação, fiscalização e punição em torno das mazelas inseridas no contexto do furto de energia. Como dito, esse crime custa aproximadamente 10 bilhões por ano ao setor elétrico (pagos pelos usuários e pelas distribuidoras), além de, infelizmente, impor uma série de riscos à vida das pessoas, em função do grau de informalidade que impera nesse tipo de prática, e não obstante as distribuidoras de energia tenham um esforço hercúleo de identificação, inspeção e recuperação dessa energia furtada. Porém, sem as chancelas do Estado legislando responsavelmente, executando, orientando e julgando severamente essas questões, muitas vezes, esse esforço da distribuidora é em vão e invisível. É preciso absoluta mobilização dos formuladores de políticas e atores de proteção da cidadania.
Conscientização dos legisladores sobre o funcionamento do setor elétrico: Como visto acima, muitas assembleias e câmaras municipais acabam por publicar leis que alteram as bases de planejamento e execução do setor elétrico, quando, por exemplo, alteram regras de suspensão do serviço, cobrança, faturamento, pagamento, dentre outros. É certo que cabe também aos estados e municípios legislarem em suas competências, porém não podem alterar as regras e comandos que configuram o setor elétrico e sua operação integrada, garantidas pelo poder concedente constitucionalmente. No afã de buscar o benefício do indivíduo ou de um grupo, ignora-se o coletivo e o efeito rebote que causa sobre os demais. Quando se altera uma regra geral de suspensão dos serviços, por exemplo, afeta-se a capacidade de planejamento e gestão do todo (e é exatamente assim que o setor elétrico funciona). São regras que juntas permitem o órgão regulador gerir, comparar, orientar e fiscalizar. Perde-se a visão do todo, perde-se a isonomia desejada.
*Wagner Ferreira é advogado com mais de 15 anos de experiência no setor elétrico e diretor Institucional e Jurídico da Associação Brasileira dos Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee)
Cada vez mais ligada na Comunidade, a MegaWhat abriu um espaço para que especialistas publiquem artigos de opinião relacionados ao setor de energia. Os textos passarão pela análise do time editorial da plataforma, que definirá sobre a possibilidade e data da publicação.
As opiniões publicadas não refletem necessariamente a opinião da MegaWhat.
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