Por: Solange David *
O Brasil passa por um verdadeiro desafio no setor de energia. Na vanguarda das tendências mundiais, seguimos investindo no aumento da participação das chamadas energias limpas em nossa matriz, com a chegada de novas opções e tecnologias, visando a consolidação de uma economia de baixo carbono nas próximas décadas. Isso é parte de um desafio maior, enfrentado em escala global, de preservação do meio ambiente para as gerações futuras (direito transgeracional).
Para isso, o país precisa ampliar sua resiliência, principalmente para enfrentar situações de maior estresse, como no caso da crise hídrica, assim como atender a demanda em eventos de maior imprevisibilidade ou períodos de maior variabilidade de geração das fontes renováveis. E essa resiliência alcança o planejamento, a operação e a regulação do setor elétrico.
Diferentemente de outros países, que precisarão fazer um esforço enorme para transformar sua matriz energética e caminhar para uma economia mais limpa, o Brasil já conta com mais de 80% de geração hidráulica, eólica ou solar, além da crescente participação das fontes de biomassa. Contudo, para manter essa vantagem competitiva, precisamos oxigenar nosso modelo de regulação, acolhendo soluções inovadoras que permitirão manter o país na dianteira do processo de transição energética.
A dinâmica da regulação assume um novo contorno, na medida em que deve ser mais flexível, considerando a evolução tecnológica, novos movimentos de mercado e demandas sociais. Para um desenvolvimento sustentável, observados os pilares da economia, do meio ambiente e da sociedade, a regulação é desafiada para ter uma visão mais interativa, sistêmica e prospectiva, inclusive com a utilização de novos mecanismos e ferramentas que possam “testar” soluções para serem adotadas no setor.
Mudanças no mercado de energia podem gerar apreensão. É compreensível, pois o setor é fundamental para a própria soberania nacional. Por isso, é bem salutar o incentivo à experimentos de sandbox regulatório, no qual empresas podem testar ou simular, de maneira restrita, novas hipóteses ou novos modelos de negócio. Isso permite que os órgãos fiscalizadores avaliem os resultados e, com mais segurança, possam promover a evolução da regulação, considerando os elementos da solução experimentada.
O primeiro sandbox regulatório foi implementado há quase uma década no Reino Unido, ainda voltado para o mercado financeiro. Com isso, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), no Brasil, adotou o sandbox em maio de 2020, para tratar de experimentos no mercado financeiro. A ferramenta foi logo abraçada pelo mercado de energia e, ainda em 2020, uma empresa de energia brasileira lançou um projetopiloto para aquisição de energia proveniente de geração distribuída, ou seja, energia produzida próxima dos consumidores, independentemente de potência e escala, por meio de placas solares. O modelo viabiliza a formação de microrredes, baseadas em RED (recursos energéticos distribuídos), que podem operar independentemente ou interligadas à rede principal de distribuição.
Soluções inovadoras como esta – que já foi testada com sucesso em países como Estados Unidos, Alemanha e Japão – conferem maior segurança ao sistema elétrico, além de dinamizar o setor. Cria-se, assim, um mercado mais competitivo e estimulante, propício ao surgimento de energytechs, ou seja, startups do setor de energia, empresas que trazem soluções disruptivas, baseadas no uso intensivo de dados, no aumento da eficiência do consumo e na exploração de novas modalidades de energia limpa.
Órgãos reguladores de vários países, como a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) aqui no Brasil, têm papel fundamental nesse cenário, pois detêm ferramentas capazes de estimular ou travar a modernização do setor. O surgimento de energytechs, por exemplo, pode implicar na disponibilização de dados aos próprios consumidores, a livre negociação de preços e a aprovação de regras de portabilidade – uma abertura similar à que ocorre no setor bancário, propiciando o crescimento das chamadas fintechs.
A função da regulação é não apenas acolher, mas fomentar a inovação tecnológica. Temos o desafio histórico de suprir a demanda crescente por energia em harmonia com o meio ambiente, o que exige, o quanto antes, empenho e criatividade dos órgãos reguladores do país para garantir a oferta de fontes limpas de modo mais eficiente.
Mecanismos que auxiliam na tomada de decisão trazem uma dinâmica relevante para a regulação, principalmente na transição energética, em que a inovação será um elemento essencial para tratar das várias questões, como as tecnologias que irão habilitar a descarbonização, a descentralização, a digitalização e a democratização (ampliação do direito de escolha pelos consumidores de serviços de energia elétrica). Com um processo de transição regulatória, fica robustecida a posição de liderança do país na própria transição energética.
*Solange David é presidente do Conselho de Administração da Santo Antônio Energia.
Cada vez mais ligada na Comunidade, a MegaWhat abriu um espaço para que especialistas publiquem artigos de opinião relacionados ao setor de energia. Os textos passarão pela análise do time editorial da plataforma, que definirá sobre a possibilidade e data da publicação.
As opiniões publicadas não refletem necessariamente a opinião da MegaWhat.
Leia mais:
Juliana Hornink escreve: Energia – experiência do cliente e o protagonismo do consumidor
Gustavo De Marchi escreve: Integração das fontes para a efetiva transição energética
Victor Gomes e Henrique Reis escrevem: Desafios para o primeiro leilão de reserva de capacidade