Guilherme Costa, Paulo D’Angioli, Rodrigo Tomiello e Wilson Klen: A amplitude do fato gerador de ICMS nos contratos de energia

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Publicado

25/Mar/2022 15:15 BRT

Por: José Guilherme Fontes de Azevedo Costa, Paulo Henrique Garcia D’Angioli, Rodrigo Tomiello da Silva e Wilson Klen de Azevedo*

O mercado de energia elétrica no Brasil tem apresentado evoluções significativas ao longo do tempo, principalmente após a publicação da Lei nº 10.848/2004, por meio da qual foram implementadas mudanças estruturais no setor, criando condições para a retomada de investimentos do setor privado, com contratos de longo prazo, e originando novas oportunidades de negócios. Assim, o novo modelo do setor elétrico fez crescer a capacidade de oferta, com equilíbrio para investidores e consumidores.

Tamanha é a importância do setor elétrico para a prosperidade nacional que uma das primeiras agências regulatórias (autarquias em regime especial) criadas foi a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o que se deu por meio da Lei nº 9.427/96.

Porém, temas relevantes nesse âmbito ainda carecem de uma evolução significativa; entre estes, a materialização normativa dos adequados contornos da hipótese de incidência e da base de cálculo de ICMS, para consumidores de energia elétrica sob encomenda, sobre a parcela da demanda contratada, porém não utilizada.

Aqui, faz-se necessário liminarmente entender a distinção entre demandas contratada e consumida. A última é aquela efetivamente utilizada pelo consumidor, que pode ser maior ou menor que a previamente ajustada com o distribuidor, enquanto demanda contratada é aquela estabelecida em contrato pelas partes, e que por um sistema de “take or pay” define o valor cobrado pela distribuidora[1].

Conforme o art. 2º, XII, da Resolução Normativa Aneel nº 1000/2021[2], define-se que “demanda contratada é a demanda de potência ativa a ser obrigatória e continuamente disponibilizada pela distribuidora no ponto de conexão, conforme valor e período de vigência fixados em contrato, em kW (quilowatts)”.

Quando a demanda efetiva ocorre a menor que a contratada, é devido o pagamento no valor do contrato; por outro lado, quando se verifica um uso efetivo de energia superior àquele previsto na demanda contratada, deverão ser feitos cálculos para o valor total a pagar.

Nas situações em que o valor da maior demanda medida ao longo de um determinado ciclo de faturamento exceder o valor da demanda contratada no período, sempre verificados os limites de tolerância aplicáveis, o consumidor ficará sujeito à aplicação da tarifa de ultrapassagem.

Considerando que essa tarifa de ultrapassagem é bem superior à tarifa padrão contratada, não é incomum que, por segurança operacional e para evitar gastos excessivos, os consumidores promovam uma sobrecontratação de demanda, isto é, uma fixação de garantia de fornecimento em valor superior àquele naturalmente esperado para seu consumo, arcando (veremos, infelizmente não apenas) com o ônus do já citado take or pay.

Além da chamada “sobrecontratação de demanda”, utilizada comumente pelos consumidores para mitigar os riscos da tarifa de ultrapassagem, um perfil de consumidor tem ainda maior desequilíbrio entre demanda contratada e a efetivamente utilizada: o Consumidor Especial.

Na já citada Resolução Normativa nº 1000/2021, em seu artigo 2º, VIII, a Aneel estabeleceu o perfil do Consumidor Especial como aquele com demanda mínima contratada de 500kW e que utiliza energia de fontes renováveis.

Assim, consumidores com demanda regularmente utilizada inferior aos 500kW (300kW, por exemplo), só conseguem obter alguma economia na medida em que aumentam o contrato de demanda com a distribuidora ao ponto de se habilitarem a migrar do ambiente cativo para o Ambiente de Contratação Livre (ACL – Decreto nº 5.163/2004), devido aos reduzidos preços de tarifa de energia no ACL.

A problemática está em que, não obstante a formação de posicionamento jurisprudencial caudaloso, prepondera para os fiscos a tributação integral, por ICMS, da demanda contratada, mesmo quando fica evidente que a parte de valores pagos pelos consumidores entre a demanda utilizada e a demanda contratada se dá por força contratual, e não pela ocorrência de fato gerador do referido imposto.

Um passo importante se solidificou recentemente acerca da questão; em tese jurídica de repercussão geral (TRG) estabelecida (RE nº 593.824/SC, relator Ministro Edson Fachin[3], Tema de Repercussão Geral nº 176[4]) em abril de 2020[5], o Supremo Tribunal Federal (STF) apresentou a seguinte conclusão “A demanda de potência elétrica não é passível, por si só, de tributação via ICMS, porquanto somente integram a base de cálculo desse imposto os valores referentes àquelas operações em que haja efetivo consumo de energia elétrica pelo consumidor.[6]

É bem verdade, à luz do previsto no art. 927[7], III, do Código de Processo Civil (CPC), que uma decisão do STF em repercussão geral vincula os juízes e tribunais no Poder Judiciário, mas ainda não é uma realidade nacional, a obrigação de autoridades e tribunais administrativos, em suas atividades cotidianas, seguirem o decidido (embora essa posição não seja a que entendemos mais adequada[8]).

Os fiscos, diante dessa realidade, seguem cobrando o ICMS sobre toda a demanda contratada, mesmo quando o efetivamente consumido é menor. É verdade que os consumidores podem ajuizar suas demandas e terão alto índice de sucesso, mas considerando as naturais dificuldades e despesas de acesso à justiça, a teimosia do fisco acaba gerando uma quebra de isonomia, eis que apenas os demandantes judiciais conseguem ver eliminada essa cobrança, já tida claramente como indevida pela Suprema Corte.

É preciso, dessarte, que haja a devida conscientização, por parte dos fiscos, no sentido de adotarem medidas normativas tendentes a reconhecer que a tributação de ICMS deve dar-se com base na realidade de sua hipótese de incidência: só é possível a tributação quando de fato a mercadoria (no caso, a energia elétrica) circula juridicamente (não basta o trânsito físico dentro de uma mesma pessoa jurídica, por exemplo[9]).

As perdas são relevantes e apenas os demandantes acabam se livrando desse injusto ônus: como exemplo numérico da carga de ICMS, um consumidor na condição A4 verde, livre ou cativo, com alíquota de ICMS em 27% (até o prazo definido pelo STF na apreciação do TRG 745[10]), que paga R$13/kW, tem 500kW de demanda contratada e utiliza 450kW, este consumidor deve pagar R$240 adicionais de ICMS mensalmente.

Dados disponíveis no site[11] da Empresa de Pesquisa Energética (EPE)[12] apontam a existência de 5,8 milhões Consumidores Comerciais e 470 mil Consumidores Industriais. Considerando consumidores com perfil de consumo do exemplo supracitado, e presumindo que apenas 30% (trinta por cento) destes consumidores estejam sobrecontratados e pagando ICMS adicional, este montante pode ser equivalente a aproximadamente R$3 bilhões anuais de ICMS recolhidos indevidamente dos consumidores de energia.

O STF fez a sua parte; declarou a cobrança de ICMS indevida sobre a parcela da demanda não efetivamente fornecida. Assim não fosse, restaria permitido o absurdo de se tributar inúmeras vezes uma mesma quantidade de energia: inadequadamente, em todas as oportunidades nas quais ela não transitasse e corretamente, apenas no cenário em que ela efetivamente fosse fornecida ao consumidor final. Tudo isso em grande desapreço às limitações ao poder de tributar, afinal, uma vez definida a competência e as balizas definidoras da imposição, não cabe ao instituidor do tributo alterar as características constitucionais do tributo para adequá-lo às suas necessidades, sejam arrecadatórias ou funcionais.

Considerada a jurisprudência do Supremo e o alto custo envolvido, mais valeria aos Estados promoverem os devidos ajustes normativos/interpretativos internos, sob pena de, quando do ajuizamento das demandas pelos consumidores, verem-se os fiscos não apenas alijados da receita futura, mas com o fardo de promover a devida devolução, monetariamente atualizada, aos contribuintes vitoriosos em juízo e arcar com os ônus da sucumbência.


[1] https://www.migalhas.com.br/depeso/346664/clausulas-de-take-or-pay-em-contratos-de-fornecimento-de-energia 

[2] https://www.gov.br/pt-br/noticias/energia-minerais-e-combustiveis/2022/01/resolucao-no-1-000-da-aneel-reune-direitos-e-deveres-dos-consumidores-de-energia-eletrica

https://www.aneel.gov.br/sala-de-imprensa/-/asset_publisher/zXQREz8EVlZ6/content/id/23277064 

https://www.aneel.gov.br/sala-de-imprensa-exibicao-2/-/asset_publisher/zXQREz8EVlZ6/content/resolucao-1-000-e-tema-do-novo-episodio-do-aneelcast/656877?inherit

https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-normativa-aneel-n-1.000-de-7-de-dezembro-de-2021-368359651 

[3] http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2642244 

[4] http://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=176 

[5] https://www.bocater.com.br/publicacoes/stf-nao-ha-icms-sobre-demanda-contratada-e-nao-consumida-de-energia-eletrica/ 

[6]http://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=2642244&numeroProcesso=593824&classeProcesso=RE& numeroTema=176

[7] https://corpus927.enfam.jus.br/legislacao/cpc-15#art-927

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm 

[8] CHMBARELLI, Guilherme. SOUZA BANDEIRA, Octávio Morgado. Temas de Processo Tributário, Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2019, “Notas sobre a vinculação dos tribunais administrativos à jurisprudência do STF e do STJ”, pp. 301-324. 

[9] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/adc-49-dos-limoes-a-limonada-02102021 

[10] https://www.migalhas.com.br/depeso/356399/a-funcao-extrafiscal-dos-tributos-e-a-atividade-regulatoria-do-estado 

[11] https://www.epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/PublicacoesArquivos/publicacao-160/topico-168/Anu%C3%A1rio_2021.pdf 

[12] https://www.epe.gov.br/pt/a-epe/quem-somos

*José Guilherme Fontes de Azevedo Costa, Paulo Henrique Garcia D’Angioli, Rodrigo Tomiello da Silva são advogados e Wilson Klen de Azevedo, especialista em Mercado de Energia

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