Opinião da Comunidade

Michel Leodonio escreve: Modernização do setor - dos avanços do último governo para os desafios da atual gestão

*Michel Leodonio, coordenador de Novos Negócios da Trinity Energias Renováveis

Michel Leodonio escreve: Modernização do setor - dos avanços do último governo para os desafios da atual gestão

Por: Michel Leodonio*

Desde 2016, com a instauração da Consulta Pública (CP) nº 21 pelo Ministério de Minas e Energia (MME), e principalmente com o advento da CP nº 33 em 2017, foram iniciados diversos debates para expansão do mercado livre de energia e aprimoramento do marco legal do setor elétrico. As medidas em discussão, embora na maior parte interrompidas pelo processo eleitoral de 2018, geraram bastante expectativa para a condução do setor no governo seguinte.

Essas expectativas começaram a se confirmar em abril de 2019, com a instituição pelo MME de Grupo de Trabalho para desenvolver propostas de modernização do setor elétrico (“GT Modernização”), que contou com a participação da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) e do Operador Nacional do Setor Elétrico (ONS), além do próprio MME. Dentro do GT Modernização foram criados 14 grupos temáticos, que trataram de temas como formação de preço, critérios de suprimento, inserção de novas tecnologias, entre outros.

Como consequência dos trabalhos do GT Modernização, foi instituído em outubro de 2019 o Comitê de Implementação da Modernização do Setor Elétrico (CIM), que teve como finalidade viabilizar a efetiva execução do plano de ação proposto no Relatório final do GT. O plano de ação continha medidas de curto, médio e longo prazo, com algumas esperadas já para o 1º trimestre de 2020.

Muito do que foi proposto não chegou a ser plenamente implementado, casos por exemplo da adoção de novo modelo de formação de preço e da separação de lastro e energia. Entretanto algumas medidas importantes foram efetivamente implantadas, dentre as quais destaca-se a exclusão do critério de demanda mínima para acesso ao mercado livre de energia, mantendo-se apenas o nível de tensão.

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Ao fim de 2019, por meio da Portaria nº 465, o MME promoveu redução gradual nos limites de carga para contratação de energia elétrica por parte dos consumidores. Tais limites, que já tinham um ano antes sido reduzidos para 2.500 kW com vigência a partir de 01/04/2019 e 2.000 kW em 01/01/2020 por meio da Portaria nº 514, foram estabelecidos em 1.500 kW a partir de 01/01/2021, 1.000 kW em 01/01/2022 e 500 kW em 01/01/2023.

Na mesma Portaria, foi definido que até 31/01/2022 a Aneel e a CCEE deveriam apresentar estudo sobre medidas regulatórias necessárias para permitir a abertura do mercado livre para os consumidores com carga inferior a 500 kW a partir de 01/01/2024. Como consequência desses estudos, em setembro de 2022 foi publicada a Portaria Normativa nº 50, estabelecendo que a partir de 01/01/2024 os consumidores classificados como Grupo A (atendidos em tensão igual ou superior a 2,3kV) poderão adquirir energia elétrica de qualquer concessionário, permissionário ou autorizado de energia elétrica, sem limitação de carga – sendo que aqueles que possuem carga inferior a 500 kW devem ser obrigatoriamente representados por agente varejista perante a CCEE. No mesmo mês o MME instaurou a CP nº 137, propondo condições para abertura do mercado também aos consumidores conectados em tensão inferior a 2,3 kV. A consulta foi encerrada em novembro, porém não houve a publicação de normativo do Ministério sobre o tema.

Outro assunto relevante foi a instauração das CPs nº 141 e 148/2022, pelas quais o MME propôs as diretrizes e a sistemática para realização de procedimento competitivo para contratação de margem de escoamento no SIN. O procedimento tem como objetivo sanar a longa fila de empreendimentos de geração, sobretudo eólicos, que buscam autorização da ANEEL para implantação, e hoje convivem com a disputa pelo acesso à rede com “projetos de gaveta” – ou seja, projetos que obtêm as licenças de implantação e conexão do empreendimento, porém sem perspectivas reais de sua viabilização.

Ainda na esfera do Poder Executivo, mas em se tratando de atos da Presidência da República, houve avanços relacionados a temas abarcados no GT Modernização que merecem destaque. O primeiro deles, foi a edição do Decreto nº 10.707/2021, que regulamenta a contratação de reserva de capacidade, na forma de potência, com rateio dos custos para todos os consumidores, tanto cativos, quanto livres.

O Decreto nº 10.707/2021 possui bastante importância, visto que o modelo atual de contratação de energia leva a distorções tanto do ponto de vista energético, pois são privilegiadas fontes de energia baratas (eólica e solar), que não possuem controle de sua geração e dependem de complementaridade de energia termelétrica; quanto do ponto de vista de alocação de custos, pois a contratação de usinas termelétricas é viabilizada fundamentalmente por leilões de energia regulados, cujos contratos são suportados somente pelos consumidores cativos.

A solução considerada ideal para sanar estes problemas, que vem sendo discutida desde 2017, é a separação de lastro e energia, criando-se dois produtos distintos – um atrelado à contribuição do ativo a um determinado critério de suprimento (lastro), que pode ser o atendimento à carga de forma instantânea ou de maneira acumulada ao longo de um determinado período de tempo, e outro atrelado ao MWh efetivamente produzido por um ativo (energia). Entretanto, não houve avanço na implementação dessa solução devido a complexidades relacionadas principalmente ao tratamento dos contratos legados, motivo pelo qual o modelo de contratação de reserva de capacidade configurou-se uma alternativa viável para evitar o agravamento do problema.

Não menos importante foi a publicação do Decreto nº 10.946/2022, que estabelece o marco legal para a exploração da energia eólica na faixa marinha de domínio da União. A medida era bastante aguardada pelos empreendedores, devido ao potencial da chamada fonte eólica offshore – em 2020 o “Roadmap Eólica Offshore” publicado pela EPE apontou potencial para instalação de 700 GW de potência em locais com profundidades até 50 metros, o equivalente a quase quatro vezes toda a potência instalada de geração de energia no Brasil.

No âmbito legislativo, também houve avanços significativos nos últimos quatro anos, dos quais destacam-se a Lei nº 14.052/2020, que instituiu o marco legal da mini e microgeração distribuída (MMGD); a Lei nº 14.120/2021, que pôs fim aos descontos nas tarifas de uso do sistema para usinas outorgadas a partir de março de 2022; e a Lei nº 14.182/2021, que estabeleceu as bases para desestatização da Centrais Elétricas Brasileiras S.A. (Eletrobras) – ainda que neste último caso tenham sido incluídos “jabutis” no projeto original, casos da contratação obrigatória de novas usinas termelétricas até 2030, a prorrogação dos contratos do Programa de Incentivos às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa) por 20 anos e a destinação de 50% da demanda de leilões de energia nova para Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH).

Por outro lado, restaram ainda desafios a serem tratados pelo novo governo. O principal deles é a continuidade do processo de abertura do mercado livre, estabelecendo as bases para que os consumidores conectados em baixa tensão – inclusive residenciais e rurais – possam participar desse mercado. Esse processo, porém, não é banal: devem ser tratados diversos pontos como o efeito dessas migrações no portfólio das distribuidoras, impactos financeiros para os consumidores que optarem por migrar ao mercado livre, regulamentação da figura do supridor de última instância, entre outras questões de extrema importância para que a abertura total do mercado seja viável.

Ainda, é de suma importância para a sustentabilidade da expansão da geração e segurança do suprimento que seja concluído o processo de separação de lastro e energia, cuja motivação foi exposta anteriormente. No intuito de dar sequência a esse processo, em dezembro de 2022 foi aberta MME a CP nº 146 para discussão de propostas metodológicas sobre o tema, contudo a já mencionada complexibilidade da implementação prática da medida e a amplitude de seus impactos exigem muitos cuidados, e o assunto deve ainda levar algum tempo para chegar a um desfecho.

A pauta de redução dos encargos setoriais, sobretudo os vinculados à Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), também deverá ser destaque na nova legislatura. Parte relevante dos valores que eram custeados pela Conta foram extinguidos pela Lei nº 14.120/2021, porém há pressão no Congresso a fim de que seja prorrogado o prazo de implantação de novos projetos para que continuem sendo elegíveis aos descontos nas tarifas de uso do sistema, aumentando a necessidade de recursos na CDE. Também há pressão por parte de investidores de energia solar para prorrogação dos prazos contidos no marco legal da MMGD para que novas conexões se enquadrem nas regras antigas, causando um aumento nos valores subsidiados pela CDE. Vale ainda ressaltar que a contratação compulsória de termelétricas estabelecida na Lei de desestatização da Eletrobras resultará em aumento no Encargo de Energia de Reserva, o que merece ser reavaliado pelo poder legislativo.

Por fim, destaca-se outros pontos relevantes que precisarão ser enfrentados nesse período, como a efetiva implementação e fortalecimento de um mercado de mecanismos para consideração dos benefícios ambientais de usinas de fontes renováveis, bem como a retomada e aprofundamento da discussão sobre o modelo de formação de preços, incluindo a possibilidade de substituição do atual modelo de preço por custo pelo modelo de preço por oferta.

Sendo assim, é possível verificar que os últimos quatro anos foram de bastante discussões e avanços no setor elétrico brasileiro, promovendo uma evolução sensível do marco regulatório na direção da modernização. Entretanto, ainda há diversos temas importantes e de grande complexidade nas esferas legal e infralegal que representarão desafios importantes para esse próximo ciclo governamental, que merecem ser acompanhados com bastante atenção pelos agentes setoriais.

*Michel Leodonio, coordenador de Novos Negócios da Trinity Energias Renováveis.

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